domingo, 21 de agosto de 2011

Do outro lado da Lua



Revista Piauí



As clínicas para tratamento de crianças e adolecentes viciadas em CRACK






Janaína, uma menina de 14 anos, negra, baixinha, boca grande e lábios grossos, falastrona e, vista de certo ângulo, divertida, não tem a ponta do dedo indicador da mão esquerda. É o menor de seus problemas. Janaína começou a se prostituir aos 10 anos. O primeiro a abusar dela foi um policial. Ganhou em troca uma pedrinha de crack. Passou a viver na área do Centro de São Paulo conhecida como Cracolândia. Entrou na roda-viva de prostituir-se, ou “fazer programas” – muitos, a cada dia –, em troca das pedrinhas miraculosas – muitas, a cada dia.
“No começo, eu nem sabia o que era programa”, diz Janaína. “Pensava que era programa de televisão.” Dá um sorriso maroto. É o seu lado divertido. Um dia, a pedra do crack estourou dentro do cachimbo e queimou-lhe a mão. “O dedo ficou cheio de pus.” Levaram-na para a Santa Casa de Misericórdia, e teve de ter a ponta do dedo amputada. Foi um acidente grave, mas um nada, um detalhe, uma coisica do tamanho da ponta de seus dedinhos de criança, no contexto geral da vida que lhe foi reservada.
Janaína é um dos adolescentes, entre meninos e meninas, internados no Serviço de Atenção Integral ao Dependente, o Said, uma unidade de tratamento da prefeitura paulistana, administrada pelo Hospital Samaritano de São Paulo. O centenário Samaritano assumiu, em anos recentes, dois projetos de atendimento gratuito a dependentes do uso de drogas. Um é o Said, iniciado em agosto do ano passado no bairro de Heliópolis, perto de uma das maiores favelas da cidade. O outro é o Projeto Jovem Samaritano, iniciado um ano e meio antes no município de Cotia, na Grande São Paulo.
Os dois obedecem ao mesmo regime, ou seja, o Samaritano, instituição privada, que administra projetos para o setor público: o Said em convênio com a prefeitura; o Jovem Samaritano com o governo do estado. O Said acolhe de adultos a crianças; o Jovem Samaritano, só adolescentes. Os dois têm em comum o fato de serem regidos por um método importado do Chestnut Health Systems, entidade americana com sede em Bloomington, Illinois.
Visitar as instituições – chamemos de “clínicas”, embora os médicos não estejam de acordo em que a palavra expresse com justeza o que representam – é, para quem não é do ramo, experimentar duas sensações diferentes. Primeira, a de conhecer uma iniciativa inovadora, tocada por profissionais dedicados e bem qualificados, e alicerçada em fundamentos tão sólidos quanto a ciência pode proporcionar no momento, numa matéria tão complexa quanto a dependência de drogas. Segunda, a de observar de perto, ao entrar em contato com os pacientes, conversar com eles e ouvir suas histórias, um mundo do qual só se tinha conhecimento pela lente distante das estatísticas e das notícias de jornal.
Esta reportagem só falará dos menores. Dizer que eles chegam ao Said, ou ao Projeto Samaritano, vindos, na grande maioria, do submundo, é pouco. Vêm do sub do sub do submundo. Protagonizam histórias proibidas de contar para crianças, quanto mais de vivê-las. Era uma vez um menino que era abusado pelo tio. Era uma vez um menino que fumava crack com o namorado da mãe. Era uma vez uma menina que contraiu HIV aos 10 anos. Todos eles já estavam ou acabam na rua, consumindo uma pedra de crack após outra.
O autor deste texto teve sua atenção voltada para as clínicas administradas pelo Samaritano ao receber um e-mail de uma amiga, a jovem psiquiatra Camille Chianca. Ela já me contara que estava trabalhando no Said. No e-mail, disse que naquele dia lhe tinha dado a louca de mostrar algo diferente a dois dos meninos internados, um de 17 anos, outro de 13. Matutou, matutou e resolveu: ia levá-los ao Museu do Futebol.
Dois outros profissionais do Said, o professor de educação física Daniel e a técnica de enfermagem Jacinta, foram junto. “No museu, eles corriam, pulavam, olhavam ansiosos para uma coisa e outra”, escreveu Camille. “Acho que a adolescência é assim.” Pareciam – eis a grande revelação – adolescentes normais. O melhor ainda estaria por vir. Do Museu do Futebol, o grupo se dirigiu ao The Fifties, uma lanchonete da praça Vilaboim, ali perto do Estádio do Pacaembu. Camille disse no e-mail que nunca esquecerá o rosto do menino mais velho, que nunca tinha ido a um restaurante, ao saborear a maravilha disponível no local chamada milk-shake. O que minha amiga queria mostrar aos dois pequenos pacientes é que há coisas tão gostosas, ou mais, na vida, do que o crack. Naquela tarde, achou que tinha conseguido.
O e-mail de Camille me ofereceu um vislumbre do outro lado da lua. Do lado de cá, o que me é familiar, e, se não cometo grosseiro engano, à grande maioria dos leitores da piauí; as crianças aprendem desde cedo o que é milk-shake, e adolescentes... ora, adolescentes se comportam como adolescentes. Fui tomado pelo desejo de conhecer o trabalho realizado no Said e no Jovem Samaritano com os garotos e garotas do crack. Ou melhor, dos garotos e garotas portadores de dependência química. (Primeira lição: jamais chamá-los de drogados, muito menos de “crackeiros”, menos ainda de “nóias”.) Eles ficam internados por até três meses. Nesse período, se envolvem em atividades que vão da prática de esportes a aulas de música e discussões de grupo.
Há diferenças entre o Said e o Jovem Samaritano. O Jovem Samaritano, que começou antes, ministra um programa de aulas de português, matemática e ciências. No Said, isso ainda não foi implantado. As vagas são poucas, para que o tratamento, individualizado e intenso, possa ser bem ministrado. O Said pode abrigar até dezesseis adolescentes meninos, dezesseis adolescentes meninas (de 12 a 18 anos) e oito crianças (até 12 anos) – até isso existe nesse mundo obscuro. O Jovem Samaritano tem capacidade para acolher vinte internos, todos adolescentes do sexo masculino.
Os jovens, não raro com um passado (e um passivo) de infratores e passagens pela Febem (ou Fundação Casa, como foi rebatizada a instituição que acolhe menores transgressores em São Paulo), ao chegar se aproximarão dos profissionais de mãos para atrás e olhar baixo. Serão convidados a soltar os braços e levantar a cabeça, olho no olho. Terão aí a senha de que se encontram em outro ambiente.
Em minha primeira visita ao Said, fui recebido por Camille e pelo enfermeiro Reinaldo Antônio de Carvalho, coordenador técnico das duas clínicas administradas pelo Samaritano. A primeira surpresa reservada ao visitante é tomar conhecimento de que as instalações são de um antigo motel, desapropriado pela prefeitura porque se encontrava em situação irregular. É bizarro, mas, bem pesadas as coisas, eis uma ideia luminosa. Motéis demais e clínicas para dependentes químicos de menos, os males do Brasil são. O precedente merecia multiplicar-se. Ainda mais que a conformação arquitetônica dos motéis, basicamente a de longas fileiras de quartos, é a mesma requerida para clínicas. Os ajustes necessários para instalar o Said foram facilitados por essa circunstância. As garagens do motel, situadas ao rés do chão, transformaram-se em quartos. E os antigos quartos, no andar superior, viraram salas de reunião, oficinas de arte e de música, consultórios.
O conjunto todo se divide em quatro alas incomunicáveis – homens de um lado, mulheres de outro, adolescentes e crianças do sexo masculino em uma terceira ala, adolescentes e crianças do sexo feminino em uma quarta ala. Quando entrei na ala dos meninos, os três ou quatro que ali se encontravam, sentados em cadeiras, me estenderam a mão. O mais efusivo foi um baixotinho que não parecia ter os 13 anos que depois soube que tem. Ao passarmos por um corredor, Camille me chamou a atenção para a tampa de ferro vermelha do extintor de incêndio, toda amassada. “É o saco de boxe deles”, explicou. Os meninos são impacientes, continuou, e reagem com violência às contrariedades. Ela atribui a impaciência ao crack, que tem um efeito fulminante. Os adolescentes passam a querer o mesmo efeito em tudo.
O enfermeiro Reinaldo de Carvalho, que antes trabalhou no setor de psiquiatria da Santa Casa, me desfia uma pequena amostra dos casos assombrosos que teve nas mãos. Um deles é o do tal menino que era abusado pelo tio, com quem vivia. O menino era portador de leve deficiência mental e foi difícil arrancar dele o que acontecia em sua relação com o tio. Não achava relevante contar. Achava normal, numa relação entre crianças e adultos. Não faz muito, surgiu um paciente, adulto, mulher, mas que se dizia homem e afirmava chamar-se Fernando. Num raro momento em que um dos meninos pôde vislumbrar a ala dos adultos, o menino gritou: “Fernando!” Ele o(a) conhecia. Fernando/Fernanda era um(a) aliciador(a) de crianças para pedófilos. O menino que o(a) reconheceu pertenceu ao quadro dos aliciados. E quem era esse menino? Aquele mesmo que me cumprimentara mais efusivamente, à entrada – o que tinha 13 anos, mas parecia menos.
Um sistema de pontos avalia se os adolescentes tiveram maior ou menor envolvimento com as atividades propostas durante a semana, melhor ou pior desempenho. A tabela com os pontos fica exposta numa parede, à vista de todos. Um certo número de pontos rende uma recompensa, que pode ser, à escolha do contemplado, um telefonema para a família, a dispensa de uma atividade que lhe desagrade, ou mesmo um passeio. Naquela ocasião do Museu do Futebol e do milk-shake, Camille estava contemplando dois ganhadores da semana.
Em outra oportunidade, ela e a psicóloga Juliana levaram um menino de13 anos ao cinema. “Você sabe o que é um cinema?”, lhe perguntaram antes. “Sei. É uma televisão grande, tem cadeiras e tem pipoca.” Foram ao Shopping Santa Cruz, ver o filme Enrolados, em terceira dimensão. Entraram no saguão, e o menino, ansioso, perguntava: “Cadê a televisão grande? Cadê as cadeiras?” Calma, garoto. Quando chegaram à sala de projeção, o menino continuou falando alto. Ensinaram-lhe que tinha de falar baixo. Durante a sessão, comeu dois sacos de pipoca e tentou agarrar com as mãos as imagens que saltavam da tela. Ao sair, foi submetido a discreta inquirição para avaliar se tinha entendido a história. Tinha.
O enfermeiro Reinaldo de Carvalho, de 31 anos, casado, pai de uma filhinha de 1 ano, teve desde cedo despertada a vocação para o que faz. Nasceu numa pequena cidade na região de São José do Rio Preto, onde o pai, quando ele era criança, foi presidente da Câmara dos Vereadores. Nessa qualidade, o pai de Reinaldo recebeu do juiz, em certa ocasião, a incumbência de encontrar tutores para três doentes mentais. Sem ter a quem recorrer, o pai assumiu ele mesmo a tarefa, e levou os três doentes para casa. Na convivência com eles, Reinaldo de Carvalho teve sua curiosidade aguçada pelos mistérios do funcionamento da mente.
Fez então faculdade de saúde pública em Rio Preto já sabendo que queria trabalhar com saúde mental. Mudou-se para São Paulo e, ao ser admitido na Santa Casa, escolheu o setor dos dependentes de álcool e drogas. Da Santa Casa foi recrutado, por meio de uma empresa de headhunters, para os projetos que o Samaritano estava por instalar.
“Entre nossos desafios está a concorrência com o traficante”, afirma Reinaldo de Carvalho sobre seu trabalho atual. “Os meninos aqui ganham um tênis All Star quando chegam, mas que é um tênis diante dos mil reais por semana que o traficante pode lhes proporcionar?” É comum o consumidor se pôr a serviço do traficante. “Já encontrei casos em que, com a renda do tráfico, os meninos viram arrimos de família. Quando são internados, as famílias pressionam para saírem logo. Precisam recuperar a fonte de renda.”
Uma vez, caiu-lhe nas mãos um impresso, ou talvez se possa dizer um boleto, emitido pelo pcc (o Primeiro Comando da Capital, a central dos traficantes paulistas) e dirigido a uma família de São Vicente, no litoral paulista. O documento estipulava certa quantia que devia ser paga para que o filho continuasse autorizado a traficar.
O dependente químico só raramente é adicto a uma única droga. Um coquetel, no qual os especialistas nunca esquecem de incluir o cigarro e o álcool, faz parte de sua trajetória rumo ao depauperamento da saúde, à dissipação da atenção, ao aniquilamento da vontade e à impossibilidade de exercer atividade produtiva em que se constitui o estado avançado de dependência. De uns anos para cá, entre as camadas mais baixas da sociedade, principalmente, mas não só entre elas, o crack passou a reinar.
Essa droga começou a ser produzida na década de 70, nos Estados Unidos, e explodiu nas ruas das maiores cidades americanas, Nova York à frente, em meados dos anos 80. No Brasil, São Paulo à frente, chegou cerca de uma década mais tarde. “O crack nada mais é do que a cocaína em pó, adicionada de água e de bicarbonato de sódio”, escreve um dos maiores especialistas em dependência química do Brasil, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, num pequeno manual – Drogas: Maconha, Cocaína e Crack. O livro foi feito em parceria com Flávia Jungerman e John Dunn, todos da Universidade Federal de São Paulo, possivelmente o mais ativo e respeitado centro brasileiro de tratamento e pesquisa da dependência química. “Essa mistura é aquecida até a água evaporar, e o produto final consiste em pedras de cocaína”, prossegue o texto.
O crack é fumado em cachimbos, que podem ser comuns ou improvisações com base em tubos de caneta Bic, copinho de Yakult ou latas de cerveja furada. Quando o cachimbo é aceso e a pedra, parecida com uma pedra de açúcar, de uma cor que vai do branco ao marrom, pega fogo, produz um estalo. Daí o nome “crack”, estalo em inglês. Ele é tido como capaz de produzir efeito mais imediato e intenso do que a cocaína. Nem todos os especialistas concordam com isso. O grande diferencial seria o preço. Há pedras de 10 reais, de 5 e “lasquinhas” de 1 real. Daí o seu apelo junto a populações nos últimos subsolos sociais.
A revista Veja noticiou (na edição de 9 de fevereiropassado) que, da convivência do traficante carioca Fernandinho Beira-Mar com o paulista Marcola, na Penitenciária de Presidente Bernardes, no interior paulista, resultou que Marcola convenceu o outro a incluir o crack em sua cesta de ofertas. Até então, o carioca relutava, no pressuposto de que a inclusão do crack abalaria o mercado de cocaína. Não, argumentou o paulista, o crack só atingiria os mais miseráveis. A conferência de cúpula entre as duas sumidades do tráfico mostra como eles são bonzinhos, em primeiro lugar, e, em segundo, explica a entrada do crack no mercado do Rio, depois de um período em que São Paulo reinou sozinho. Hoje está disseminado Brasil afora.
A Prefeitura de São Paulo mantém há dois anos um programa de assistência aos moradores de rua. Ação Integrada Centro Legal é o nome do programa, bem de acordo com a tendência (federal, estadual e municipal) de embalar os programas com nomes de fantasia, de apelo marqueteiro – Fome Zero, PAC, Minha Casa Minha Vida. Mas que o Centro Legal não se perca, nem seja julgado, pelo nome. Funciona bem, até onde podem funcionar bem os programas sociais brasileiros, e criou a figura dos “agentes urbanos” para, à semelhança dos agentes de saúde, que visitam as pessoas em seus domicílios, ir ao encontro das pessoas que não têm domicílios.
O trabalho dos agentes urbanos consiste em abordar o “povo da rua” – outro nome de fantasia, este cunhado pelas ONGs e organizações religiosas – e oferecer-lhes a ajuda possível. No caso dos adultos, se não estiver em condições de responder à abordagem, de tão drogado ou alcoolizado, ou se estiver ferido, será encaminhado a algum hospital. Se estiver em condições de responder à abordagem, será encaminhado a um abrigo ou, se for o caso, a uma clínica, apenas se concordar com isso.
Tratando-se de menor de idade, flagrado consumindo ou sob o efeito de droga, será obrigatoriamente tirado da rua, e pode vir a ser internado numa das treze clínicas de que dispõe a prefeitura, entre as quais o Said. É o que determina o Ministério Público, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa é uma das maneiras de o menor chegar ao Said. Outra é a própria família encaminhá-lo a um hospital, ou pronto-socorro, de onde será transferido para uma clínica especializada. E outra ainda é o próprio menor procurar ajuda terapêutica.
Em minha segunda visita ao Said, logo ao chegar cruzei com duas profissionais, a enfermeira Graziela, coordenadora da unidade de adolescentes femininas, e a assistente social Sheila. Elas saíam para uma audiência na Justiça em que tratariam do caso de Janaína. Para onde encaminhar a menina, terminado o prazo de internação? – esta era a questão. A mãe tinha sido notificada para discutir o assunto com o juiz da Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Santo Amaro.
Nesse dia, Reinaldo de Carvalho, que conhece Janaína desde os tempos em que trabalhava na Santa Casa, me levou até a menina. “Meu príncipe!”, foi a saudação com que ela o recebeu. Janaína o trata assim desde o dia em que, internada na Santa Casa, naquela ocasião quando queimou o dedo, fazia tanta bagunça que o enfermeiro ameaçou: “Se você não parar, vai para o pronto-socorro.” A agitação, segundo ele, devia-se à crise de abstinência. Janaína vestia uma fantasia de princesa, tinha nas mãos um chapéu de príncipe, e disse que pararia se ele concordasse em colocar o chapéu na cabeça. O enfermeiro pôs, e virou para sempre o príncipe.
No dia de minha visita, cumprido o ritual de saudar seu príncipe, Janaína perguntou-lhe se ele já sabia do resultado da audiência. A política do Said é manter os pacientes informados de tudo que lhes diz respeito. Não, respondeu Reinaldo. Graziela e Sheila tinham acabado de sair. Janaína estava muito curiosa em saber se sua mãe compareceria à audiência, mas se mostrava pessimista. “Minha mãe me abandonou”, disse.
Janaína (o nome verdadeiro é outro) é filha de mãe alcoólatra. Tem oito irmãos, um deles deficiente mental. Logo depois de nascer, foi retirada da mãe, que batia nos filhos. Abrigaram-na num orfanato. Aos 5 anos, voltou para a mãe, que havia virado evangélica e parara de beber. Aos 9 anos, acompanhou a mãe numa sortida até a Cracolândia. O objetivo era resgatar um irmão de Janaína, cinco anos mais velho, que se viciara em crack. Em vez de trazer o filho de volta, a mãe acabou perdendo também a filha. Janaína gostou do que viu e, principalmente, do que experimentou.
A menina passou a viver na rua e a se prostituir para comprar o crack. Conquistou alguns protetores. O dono de uma padaria deixava que ela dormisse na soleira da porta de seu estabelecimento, e até lhe dava pão, de manhã. Entre um programa e outro, uma pedrinha e outra, não foi apenas daquela vez que queimou o dedo que foi parar na Santa Casa. Várias outras vezes machucou-se, ou exagerou na dose, e acabou no hospital.
Ela diz, com orgulho, que nunca roubou. Os programas é que lhe proporcionavam o dinheiro para comprar a droga. Cobrava dos clientes 10 ou 20 reais. Não gostava do sexo. E do que gosta? Janaína diz que, mais que tudo, gostaria de ter duas coisas: uma bota de caubói e uma bicicleta. Uma bota de caubói já teve, mas ficou pequena. “Hoje calço quarenta”, diz, olhando os pés. São mesmo grandes. Às bicicletas, ela se afeiçoou quando roubava as dos vizinhos para dar umas pedaladas. Ué, mas não disse que nunca roubou? “Ah, mas eu devolvia.”
Gosta também de natação, que praticava enquanto esteve no orfanato. Gostaria muito de voltar a nadar. E para onde gostaria de ir, quando deixar o Said? Ela sabe para onde não quer ir: para um abrigo. Nos abrigos é permitido sair, e ao sair ela terá vontade de “usar”. “Usar”, sem precisar o quê, é característico da linguagem dos dependentes de crack. Preferem evitar a palavra.
Ao nos despedirmos, Janaína mostra que ainda está com a audiência na cabeça. “Quando elas voltarem você me conta?”, pede a Reinaldo de Carvalho. Volta a comentar que a mãe a abandonou. Ele me dirá depois que a mãe não quer receber a filha de volta.
Nesse mesmo dia, conheci outro personagem de quem já ouvira falar – o menino que Camille e Juliana haviam levado ao cinema para ver Enrolados. Tem 14 anos, mas aparenta menos, é branco, trazia os cabelos negros raspados dos lados e distribuídos num bem desenhado círculo no cocoruto. A mãe, faxineira do metrô, mora no Jardim Damasceno, na Zona Norte de São Paulo. Tem três irmãos, um deles mais velho, e começou a usar crack aos 7 anos, segundo vai me dizendo numa conversa que progride aos arrancos, ele sempre respondendo com monossílabos. O irmão mais velho também usa, e os dois já passaram pela Fundação Casa, por furtos e assaltos. O pai vive no Recife.
Diz que, entre as atividades no Said, suas preferidas são “bater tambor” e jogar bola. Pergunto para onde vai ao terminar a internação e ele responde que voltará a morar com a mãe. Minutos depois, diz que vai viver com o pai, no Recife. Despeço-me, quando parecem esgotadas as possibilidades de arrancar-lhe alguma coisa a mais, e ele então se aproxima e me dá um abraço apertado. Que é isso? Nesse momento, até parece uma criança das nossas! Doce, carinhosa e amorável como aquelas do nosso lado da lua. Minha sensação deve ser a mesma que experimentou Camille, no Museu do Futebol, ao se dar conta de que seus dois pequenos pacientes agiam como o comum dos adolescentes.
Quando ele vai saindo, ocorre-me perguntar algo que me escapara. Há quanto tempo está aqui? “Setenta e dois dias”, responde, com inesperada presteza. Reinaldo de Carvalho comenta que é comum eles contarem os dias de internação. Acrescenta que a possibilidade de vir a morar com o pai, aventada pelo menino, é inexistente, e que a mãe sofre a pressão dos vizinhos (com quem convive em casas amontoadas, como ocorre nas comunidades pobres) para não receber de volta um menino que já aprontou tanto. A amorável criatura é outro candidato a eternizar-se na condição de criança largada.
A primeira surpresa que o doutor Pedro Daniel Katz reserva ao interlocutor, ao falar de sua história pessoal, é contar que, perto de terminar o curso colegial, hesitou entre a medicina e o rabinato. A segunda surpresa é que quem o ajudou na decisão foi o padre canadense Paul-Eugène Charbonneau, vice-diretor do Colégio Santa Cruz, onde estudava. Elementar, diria o espírito de porco: a um padre não interessaria a concorrência de mais um rabino na praça. Isso para quem não conheceu, ou nunca ouviu falar, do falecido Charbonneau, famoso por uma mente aberta que chegava a chocar, no panorama conservador da Igreja Católica dos tempos em que aportou no Brasil. Pedro Katz foi para a medicina sem deixar o cultivo dos ritos e tradições judaicas.

Uma terceira surpresa, para quem o conhece do ambiente dos hospitais, clínicas e consultórios, é que toca piano e canta num conjunto de música hebraica. Na medicina, especializou-se em psiquiatria e, dentro dela, devota particular interesse pelo tema do preconceito que cerca os pacientes de transtornos psiquiátricos. Num dos locais em que trabalhou, o Hospital Pinel, em Pirituba, quando a telefonista atendia e dizia “Pinel, bom-dia”, ocorria de a pessoa do outro lado cair na gargalhada. A vã e inculta plebe tomava o santo nome do doutor Philippe Pinel, fundador da psiquiatria moderna, pela grosseira acepção que entre nós se atribui a seu sobrenome. A mesma confusão transparecia na correspondência que, em vez de “ao Hospital Pinel”, vinha destinada “ao Hospital do Pinel”.

Desde 2001, Katz trabalha na psiquiatria do Hospital Samaritano. Hoje, aos 54 anos, é diretor técnico dos projetos Said e Jovem Samaritano. Ele me recebe nesse hospital sediado no mesmo recanto do bairro de Higienópolis, já quase confinando com o do Pacaembu, em que se implantou, em 1894, por iniciativa de grupos de imigrantes protestantes. Nove meses atrás, Katz talvez fosse descrito como um homem gordo. De lá para cá, como informa com orgulho, perdeu 16 quilos. A descrição merece ser corrigida para “um homem sólido”.

Diz que o que o atraiu para os projetos sob sua direção foi seu caráter “inclusivo”, baseado no “reforço positivo”, em que “não se fala nas perdas, mas nos ganhos do paciente”. São prescrições que afastam qualquer investida moralista contra os usuários de drogas, e estão na base dos protocolos desenvolvidos pelo casal de psicólogos Susan e Mark Godley, desde a década de 70, na Chestnut Health Systems, a instituição americana cujo método foi importado pelo Samaritano.

O enfoque é no comportamento e na capacidade cognitiva do paciente, e a chave que permitirá o início do tratamento é conseguir um canal de comunicação com ele, especialmente quando se trata de menor de idade. “Adolescentes não se abrem por si sós”, diz Katz. “Eles conversam pelo olhar.” Decifrar o que dizem é o primeiro desafio. Uma regra de ouro é jamais confrontá-los. Além dos psiquiatras, dos psicólogos e dos enfermeiros, os dois projetos ainda contam com os serviços de clínicos gerais, ginecologistas, dentistas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, nutricionistas, professores de educação física, de primeiras letras e primeiros números, conselheiros (encarregados da ponte com as famílias) e monitores.

Já se percebe, se não se percebeu até agora, que empreendimentos como o Said e o Jovem Samaritano são caros. A prefeitura repassa 1 milhão de reais por mês ao Samaritano para a manutenção do Said. No outro projeto, o próprio Samaritano investe 3,5 milhões de reais por ano, gozando em troca da isenção fiscal que a legislação garante a hospitais que mantêm projetos de responsabilidade social, de ensino e de pesquisa. À crítica pelo alto custo sempre se pode responder invertendo a questão: E quanto custa à sociedade não contar com semelhantes iniciativas?

A abordagem multidisciplinar é característica do método. “A multidisciplinaridade é fundamental”, diz Katz. “É muito complicado trabalhar sozinho.” Ele acredita mais ainda nas virtudes de obedecer a um método. “Muitos profissionais chegam com ideias próprias, mas com o tempo percebem que é mais eficaz abraçar o modelo do que se deixar levar por iniciativas ou experiências pessoais.”

Num recente congresso em Buenos Aires, Katz deparou-se com painéis pendurados nas paredes que relatavam “casos”. Não falavam em métodos, nem descreviam protocolos. A seu ver, os serviços de saúde mental no Brasil são frouxos em metodologia; as decisões individuais superam os protocolos. Não que todos devam seguir o mesmo método. O National Institute on Drug Abuse, Nida, órgão do governo americano que apoia a pesquisa e fomenta a disseminação dos avanços científicos na prevenção e tratamento da dependência química, reconhece a validade de diversos métodos de tratamento. “O que não se pode é trabalhar sem método”, diz Katz.

Ao dar entrada, e apurados seu histórico de vida e situação familiar, o paciente será submetido a exames médicos que investigarão possíveis “comorbidades”, como se diz na linguagem técnica – doenças como Aids e tuberculose são frequentes. Mais difícil é identificar se o dependente químico sofre de alguma doença mental. Os sintomas continuarão mascarados pela droga, mesmo por um bom tempo depois que deixou de ser usada. Internado, ele não pode fumar nem ingerir bebida alcoólica.

Cada um terá um “manejador” – médico, psicólogo, assistente social, enfermeiro ou outro do elenco de profissionais, encarregado de olhá-lo de perto e atender suas necessidades. É uma forma de aprofundar o tratamento individualizado que se pretende ministrar. Terminado o período de internamento, aos pacientes é disponibilizado um tratamento ambulatorial por até dois anos. “Há vários instrumentos a serem utilizados no atendimento, mas o mesmo não funciona para todos”, diz Katz. E insiste numa máxima que recita com a ênfase necessária para lhe dar força de lei: “Nada é óbvio no dependente químico.”

Entre uma visita e outra ao Said, fui conhecer o Projeto Jovem Samaritano. Está instalado à margem da rodovia Raposo Tavares, ocupando as mesmas instalações de uma clínica com fins semelhantes, outrora administrada pelos padres camilianos, ainda donos da propriedade. Escapou de ocupar um antigo motel, mas por pouco: quem conhece a Raposo Tavares sabe que motéis não faltam, às suas margens. Motéis de mais e clínicas de menos, como o leitor já sabe, os males do Brasil são.

O ambiente no Jovem Samaritano é de chácara de lazer. Quadras e espaços com ar campestre circundam as construções térreas em que se sucedem os quartos e salas de atividades. Os muros são baixos. “Quem quiser pode fugir”, diz Reinaldo de Carvalho, que divide sua semana de trabalho entre um e outro dos projetos mantidos pelo Samaritano. O muro baixo enfatiza o caráter voluntário da internação. No começo, explica Reinaldo, houve fugas. Ultimamente, não. Enquanto ainda nos encontramos nos espaços ao ar livre, um jovem se aproxima do pequeno poste em que está pendurado um sino e o aciona. Está chamando o grupo para uma nova atividade. A cada semana um interno assume alguma das funções necessárias ao bom funcionamento da clínica. A este, atualmente, cabe a de sineiro.

A atividade para a qual ele chama é a discussão do “tema da semana”. Comunicação, autopercepção, memória: eis alguns exemplos de “temas da semana”, informa Reinaldo. Quando passamos para o interior da edificação, os meninos já começaram a reunião, a portas fechadas. Um deles sai da sala, no momento mesmo em que percorremos o corredor que lhe dá acesso. “Estou tonto”, justifica, e dirige-se a seu quarto. “Se fosse aula de educação física, ele não ficaria tonto”, comenta Reinaldo.

O Jovem Samaritano, no final de fevereiro, tinha só treze de suas vinte vagas preenchidas. Vivia uma entressafra. Alguns pacientes receberam alta em dias recentes; outros, candidatos à internação, estão sendo avaliados. Nesse instante, em outra sala, se está fazendo uma avaliação. É uma atividade que ocorre em mão dupla: tanto o candidato é avaliado quanto ele avalia se quer ficar ou não. Ficarei sabendo, até o fim de minha visita, que desta vez o avaliado não quis ficar.

No Jovem Samaritano, à diferença do Said, os meninos são divididos em grupos chamados de “alfa”, “beta” e “gama”, para a prática de algumas das atividades. O recurso às letras gregas é para não lhes ficar claro que há uma hierarquia entre os grupos, como ficaria, se fossem a, b e c, ou 1, 2 e 3. O alfa reúne aqueles que um leigo chamaria de mais inteligentes, ou mais bem preparados, ou mais aptos a absorver o tratamento, mas que os profissionais definem como de maior capacidade cognitiva.

O primeiro menino que vou entrevistar pertence ao grupo alfa. Tem 16 anos, fartos cabelos negros, é branco, sorri com facilidade, olha nos olhos, é vivo, atento e bem articulado. Hummm! Desculpe o leitor, ninguém aqui quer se fazer de preconceituoso, mas, de novo, vem aquela impressão de que ele é um dos nossos – não dos “deles”. No entanto, este menino vem de um ambiente barra-pesada. É do notório Jardim Ângela, bairro paulistano que a ONU já considerou a região urbana mais violenta do mundo. O pai “mexe com remédios” e a mãe é dona de casa. Tem um irmão e quatro meios-irmãos. Nos últimos anos, o Jardim Ângela recebeu melhoramentos, teve o policiamento reforçado e seus índices de criminalidade caíram. Mesmo assim, o jovem, quando lhe pergunto se era fácil obter a droga, vai contando de cabeça e chega a sete pontos de venda apenas nos quarteirões mais próximos de sua casa.

Ele diz que seu envolvimento com drogas teve origem no “vazio” que sentia, combinado com o desejo de “ser popular” e atrair meninas. Iniciou-se no tabaco aos 11 anos, na cocaína aos 13, chegou ao crack aos 15. Entrou e saiu repetidas vezes de instituições de recuperação. Começou a se afundar. Em vez de conquistar as meninas, viu-as se afastar. Perdeu cinco namoradas. Chegou a um ponto em que pediu socorro ao pai, o qual o trouxe à presente internação. Está aqui há um mês e dezesseis dias (também tem o número na ponta da língua), e considera-se bem encaminhado.

“Meu problema era achar minhas dificuldades”, disse. Acredita que achou, ou que está achando. Gosta de matemática. Anuncia que quer ser engenheiro civil. Exibe um ar seguro e confiante. Ao terminarmos a entrevista, peço a Reinaldo que me apresente um interno de outro grupo que não o alfa. Ele chama então um beta – um jovem também de 16 anos, pele morena, cabelo cortado rente, gestos nervosos, cara de mau. Não sorri. Êpa! Este é dos “deles”. Começa a conversa dizendo que tem muita raiva e pouca paciência. Qualquer olhar que lhe lancem, interpreta como desafio. É da periferia norte de São Paulo, mora ali, na rua Y, junto à avenida X, perto do supermercado Z, conhece? Faço que sim, mas claro que não. É um recanto do lado deles da lua, não do nosso. Vive com o pai, eletricista, que o trouxe aqui. Está cansado do mundo das drogas e do crime. Quer mudar de vida.

Ele conta que começou com as drogas aos 13 anos. Cocaína, maconha, lança-perfume. Não menciona o crack. (Não experimentou ou tem vergonha de dizer?) Envolveu-se com o tráfico e com assaltos. Gerenciava uma “biqueira” por delegação do tio, que, preso por tráfico e por sequestro, ordenou à família, num telefonema: “Diz para o Fulaninho traficar.” O Fulaninho, quer dizer, o menino que tenho à minha frente, assumiu altas responsabilidades no negócio. Cuidava do barraco de refino da droga, do barraco da estocagem e do barraco do comércio. O tio é da família da mãe. Toda a família da mãe é bandida, informa ele.

A esta altura, vira-se, levanta a camisa e mostra uma tatuagem nas costas. É um sol?, pergunto. “O sol é só para ‘desbaratinar’”, explica, e me pede para olhar com mais atenção. O sol esconde outra bola, no centro, dividida em duas metades por uma linha curva. Uma das metades é clara e tem no meio uma bolinha escura; a outra é escura e tem uma bolinha clara. A primeira representa o bem, a segunda o mal, explica. “É o símbolo do Comando Vermelho”, diz. Mas Comando Vermelho não tem só no Rio?, pergunto. “Não, tem no Brasil também”, responde, não sei se por um lapso ou porque sua geografia assim dispõe.

Três vezes esteve internado na Febem/Fundação Casa. Apanhou muito lá, e da polícia já levou tiro. Uma vez assaltou um bingo. Conseguiu não gastar todo o dinheiro e – prodígio de previdência – até hoje tem parte dele na poupança. À escola ia armado, ameaçou professores. Na Febem, agrediu companheiros. Cansou do sofrimento que causava a si mesmo e ao pai e veio para cá, superando o medo de que clínicas como esta cultivassem o mau hábito de misturar veneno na comida, como lhe diziam. Pediu ao tio para dispensá-lo das hostes do tráfico. O tio, que se diz convertido a Jesus e quer virar pastor evangélico, dispensou-o. Não fosse assim, estaria marcado para morrer. Quando sair daqui, quer retomar os cursos que outrora andou frequentando, no Senac.

Quando o jovem já deixava a sala, Reinaldo chama-lhe a atenção: “Não está esquecendo de alguma coisa?” Ele estava de chinelos. Ah, sim. Precisaria calçar os tênis, porque era hora de educação física. “Me entendo muito bem com esse menino”, comenta Reinaldo, quando ele se afasta. Em seguida me aconselha a não levar ao pé da letra tudo o que disse: “Eles costumam criar histórias para intimidar uns aos outros.” No caso, talvez também para me impressionar, acrescento. O eletricista pai do menino é “um doce”, segundo Reinaldo. Costuma visitar o filho e acompanha com atenção seu tratamento.

A clínica é aberta para a visita dos pais às quartas-feiras, das 17h30 às 19h30, quando eles são convidados a jantar com os filhos. Nem todos aceitam o convite. “Se seu filho tivesse operado de apendicite, você não iria visitá-lo?”, costuma argumentar Reinaldo com os recalcitrantes. “Eles estão em tratamento, da mesma forma.” Muitos pais, como vimos, na verdade gostariam de nunca mais ver os filhos.

A assistente social Deise Fernandes do Nascimento teve um sonho que a intrigou, em abril do ano passado. Ela se via num ambiente estranho, um edifício em que prevalecia o concreto, com muitos vazios, e crianças a cercavam. As crianças faziam uma roda à sua volta, como se lhe pedissem algo. “Que crianças seriam essas?”, perguntou-se, ao acordar. O sonho perturbou-a por vários dias. “Não podiam ser meus três filhos, duas meninas e um menino, não, era outro tipo de crianças, e numerosas.” Em agosto, soube por uma amiga que uma nova instituição, chamada Said, procurava um profissional que – enfatizou a amiga – se encaixava muito bem em seu perfil. Não se entusiasmou num primeiro momento. A amiga insistiu. Ela continuou relutante. Enfim se apresentou, gostou do projeto, o projeto gostou dela, e foi contratada. Hoje, aos 35 anos, é coordenadora da ala dos meninos do Said, e desconfia de que o sonho tem algo a ver com as tarefas que lhe cabem.Deise fa-la com desembaraço e defende com entusiasmo seu trabalho. “Eu amo o que faço”, diz. Às atividades práticas acrescenta as acadêmicas. Empenha-se num mestrado na Unifesp, em torno do tema Educação e Saúde na Infância e na Adolescência.

Ela conta que no momento (estamos na primeira semana de março), o grupo sob sua responsabilidade inclui uma criança, quer dizer, um menor abaixo dos 12 anos. Esse menino tem 11, e é da região de Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo. Quando chegou, mostrava-se agressivo, gritava, jogava-se no chão. Seu curto passado já era rico de passagens por abrigos, por Caps (Centros de Atenção Psicossocial, entidades públicas para atendimento de portadores de transtornos mentais), por Creas (Centros de Referência Especializados de Assistência Social, entidades públicas criadas para fornecer proteção a pessoas sob “risco social”), pelo Projeto Quixote (entidade ligada à Unifesp). Tem cinco irmãos, os dois mais velhos na rua e os dois mais novos num abrigo.

Quando a mãe, de 35 anos, ela própria com uma história pessoal de abusos na bagagem, foi visitá-lo, ele chorou e questionou-a pelo fato de os irmãos pequenos estarem no abrigo. Deise providenciou uma visita do menino aos irmãos menores. “Foi bom para ele, há afeto entre os irmãos.” O menino tem melhorado. “Hoje é uma criança de 11 anos.” Seria uma história de sucesso? Ela hesita, diante de minha indagação. Sucesso? “Que é sucesso?”, devolve. Minha pergunta, mea culpa, mea culpa, foi tola. Esse menino tem muita estrada pela frente. Se hoje apresenta tal progresso que pode ser promovido à extraordinária categoria de “uma criança de 11 anos”, as condições gerais continuam péssimas, para percorrê-la.

Pergunto por outro caso que Deise considere significativo, e ocorre-lhe o de um menino de 13 anos, oriundo de estrato social mais alto do que o normal dos pacientes do Said. Os pais são separados, a mãe vive com o namorado. Os dois irmãos e o namorado da mãe são dependentes de droga. A mãe costumava deixar dinheiro para o menino, assim ele não roubava em casa para comprar a droga. O menino reagiu bem ao tratamento, teve alta e voltou para casa. O namorado da mãe, adicto à cocaína, mas ainda não ao crack, aproveitou sua presença para pedir-lhe: “Você me ensina a fumar
crack?” O menino o atendeu. Teve uma recaída, saiu de casa, voltou à rua.

Dias depois, entrou em contato com o Said e pediu para voltar. O tema do sucesso volta à cabeça de Deise. “Isso é sucesso”, comenta. “Perceber o que pode prejudicá-lo. Ver que é possível mudar.” Ela acredita no seu trabalho, acredita na possibilidade de oferecer uma alternativa aos jovens pacientes, mas é realista o suficiente para não estender o metro do “sucesso” para além do que é observável na hora presente, nas condições presentes.

Eis uma questão que torna a missão de quem lida com dependentes químicos semelhante ao de um viajante a quem é vedado enxergar onde vai dar a viagem – o que lhe acentua o risco da frustação, mas também a nobreza. O médico que tira o apêndice do paciente sabe que, pronto!, ele está curado. Mesmo o que trata de um câncer sabe, em boa parte das vezes, para o bem ou para o mal, no que vai dar o tratamento. Quem trata de dependentes de drogas trabalha com um horizonte mais conturbado. Mesmo porque a melhor ciência recomenda considerar que, para tais pacientes, incluindo entre eles os alcoólatras, não há cura. O que há é a resistência à recaída, mesmo que ela dure a vida inteira.

Dados tais descontos, um critério mínimo utilizado para apurar os índices de recuperação e manutenção – o doutor Pedro Katz não recomenda o uso da expressão “taxa de sucesso” – é acompanhar se, num período de dois anos, não houve reincidência, e se o paciente conseguiu a reinserção na escola, no trabalho e no ambiente social. Quando o Projeto Jovem Samaritano fez dois anos, uma enquete entre os atendidos até então chegou a uma taxa de 45% de resultados positivos. O projeto Said ainda não tem os dois anos para ser submetido a semelhante balanço.

Até o final de março, o Jovem Samaritano somava 235 atendimentos em sua existência. O Said, que oferece mais vagas, somava 430, aí incluídos os adultos. A Chestnut Health Systems, instituição em que se inspiram e se espelham os projetos do Samaritano, já contabiliza 60 mil atendimentos em sua história de mais de três décadas, e apregoa uma taxa de recuperação dos pacientes de 65%. No Brasil, a recuperação se complica quando a população atendida pertence aos mais baixos estratos da sociedade. Os americanos da Chestnut estiveram em São Paulo em fevereiro, para visitar as instituições administradas pelo Samaritano. Segundo o psiquiatra Elie Leal de Barros Calfat, coordenador dos médicos do Said, eles ficaram impressionados com as condições sociais dos atendidos, muito mais ingratas do que as que observam em sua terra. O mesmo psiquiatra Elie Calfat define com uma frase lapidar a sorte dos pacientes que lhe chegam às mãos: “A droga, na vida dessas pessoas, é apenas um adereço.”

PS: A mãe de Janaína não compareceu à audiência. Discutiram-se ali duas possibilidades: encaminhar a menina a um abrigo ou ao Programa Equilíbrio, mantido pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP para atendimento das crianças de rua.

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