sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Freud e o frenesi da cocaína nas rodas intelectuais do século 19

DWIGHT GARNER

DO "NEW YORK TIMES"

O primeiro milionário da cocaína no mundo foi provavelmente Angelo Mariani, um químico francês natural da Córsega, como escreve o médico Howard Markel em seu novo livro, "An Anatomy of Addiction" (uma anatomia do vício). Nos anos 1860, Mariani juntou folhas de coca moídas a vinho de Bordeaux e vendeu seu "vinho tônico" sob a marca Vin Mariani. Cada 29 ml do Vin Mariani continham seis miligramas de cocaína.
Um dos admiradores do Vin Mariani foi o ex-presidente americano Ulysses S. Grant (1822-85), que, aproximando-se da morte por câncer da garganta, tomava-o enquanto redigia suas memórias. O vinho foi elogiado por celebridades como Júlio Verne (1828-1905), Henrik Ibsen (1828-1906), Thomas Edison (1847-1931), Robert Louis Stevenson (1850-94), Alexandre Dumas (1802-70) e Arthur Conan Doyle (1859-1930). É divertido imaginar cada um deles em um anúncio de jornal do Vin Mariani, com legenda anunciando, como diria o comediante Lenny Bruce (1925-66) mais tarde sobre seu consumo de heroína: "Vou morrer jovem, mas é como beijar Deus".
Markel é professor de história da medicina na Universidade do Michigan e autor de livros que incluem "When Germs Travel" (quando os micróbios viajam) e "Quarantine!" (quarentena!). Ele relata a história do Vin Mariani para revelar o grau de adesão de intelectuais à cocaína, uma substância inebriante até então desconhecida nos Estados Unidos e na Europa, na segunda metade do século 19.
Cientistas se apressaram em explorar os usos possíveis da cocaína. Alguns acreditavam na capacidade dela de "energizar o mais indolente dos pacientes", escreve o autor, "e curar uma grande variedade de males crônicos como dispepsia, flatulência, cólicas, histeria, hipocondria, dores nas costas, dores musculares e disposições nervosas". Os pacientes podiam comprar cocaína nas farmácias, sem receita médica, do mesmo modo como hoje você pode comprar uma lata de Red Bull.
Entre os que aderiram ao fervor que cercava a cocaína na década de 1880 estavam o jovem Sigmund Freud (1856-1939), o futuro pai da psicanálise, que na época praticava medicina em Viena, e o cirurgião William Halsted (1852-1922), que fazia o mesmo em Nova York e se tornaria um cirurgião inovador. Freud acreditava, desastrosamente, que a cocaína pudesse ser usada para curar a dependência de morfina; sua primeira publicação científica importante, "Über Coca" (1884), tratava da droga. Halsted estudou a cocaína como anestésico local para uso em cirurgias. Ambos fizeram experimentos livres com o pó branco. Ambos se tornaram dependentes.

INSIPIDEZ

Em "Anatomy of Addiction", Markel entrelaça as histórias desses dois homens de maneira estreita, inteligente e, em vários momentos, elegante. Seu livro, elogiável em muitos níveis, sofre de uma insipidez difusa. Há poucas frases memoráveis ou insights encantadores. Frases feitas à moda de "pálido como um defunto" ou "evitar como uma praga" estão por toda parte. A impressão que se tem é de que esse livro foi escrito não a base de um pó estimulante boliviano, mas de chá de camomila.
Mas Markel escreve bem, entre outras coisas, sobre a atração que a cocaína representava para médicos sobrecarregados de trabalho. Um célebre professor de medicina da época repreendia seus alunos, dizendo que "aquele que precisa de mais de cinco horas diárias de sono não deve estudar medicina".
O que poderia haver de errado com a cocaína? Sobre os efeitos da droga, o autor escreve: "Não se trata da alegria despreocupada, do tipo 'amo todo mundo' que surge após algumas doses de uísque. Sob a influência da cocaína, uma pessoa experimenta uma sensação de autoconfiança extrema, sente-se quase eletricamente carregada de pensamentos mais rápidos e ideias melhores (pelo menos em sua própria visão, no momento da euforia induzida pela droga), fala mais rapidamente e tem uma apreciação maior de sensações como visão, som e tato".
Freud gostava tanto da coisa que mais ou menos entre 1884 e 1896, quando estava na casa dos 20 e 30 anos e em seu período de consumo mais intenso de cocaína, não raro aparecia com o nariz vermelho e úmido. Ele dava cocaína a seus familiares e amigos. Usava-a para "fazer os dias ruins ficarem bons, e os dias bons, melhores", escreve o autor, e para aliviar "a dor de ser Sigmund".
Suas cartas à noiva às vezes eram repletas de sentimento sexual, do tipo que uma fileira de pó pode instigar. "Vou beijar você até deixá-la vermelha e alimentar você até deixá-la gordinha", escreveu Freud. "E, se você for ousada, vai ver quem é mais forte: uma menininha meiga que não come o suficiente ou um homem grandão e selvagem com cocaína em seu corpo."
Freud deixou de usar cocaína por volta de 1896, quando tinha 40 anos, antes de escrever as obras que o fizeram famoso. Markel toma o cuidado de não vincular estreitamente o consumo da droga por Freud às ideias posteriores dele. Mas oferece pequenas porções de especulação tentadora.

COCAÍNA E INCONSCIENTE

Estudos acadêmicos recentes, ele escreve, ofereceram "ponderações nuançadas sobre a ligação entre o abuso de cocaína por Sigmund e suas ideias singulares acerca do acesso ao inconsciente por meio da terapia da fala; a divisão entre como nossa mente processa o prazer e lê a realidade; a interpretação dos sonhos; a natureza de nossos pensamentos e de nosso desenvolvimento sexual; o complexo de Édipo, e o desenvolvimento do id, ego e superego".
Ele cita o historiador Peter Swales: "O conceito de libido de Freud não passa de uma máscara e de um símbolo da cocaína; a droga, ou, melhor, seu espectro invisível, espreita o conjunto dos escritos de Freud, até o final."
Freud usava cocaína por via oral e nasal. Halsted, enquanto estudava as utilizações da droga como anestésico local, a injetava diretamente em suas veias. Ele se tornou muito mais dependente da cocaína, e esta quase arruinou sua carreira. Os dois homens eram contemporâneos e transitavam em círculos semelhantes, mas não há indicação de que tenham se conhecido.
Halsted acabaria por passar algum tempo em um hospício, tentando livrar-se da dependência. Markel apresenta o argumento de que Halsted nunca chegou a superar seus vícios por completo e que continuou a abusar da cocaína e da morfina -mantendo-se funcional-- até o final da vida.
Travar conhecimento com Halsted talvez seja um dos prazeres proporcionados por este livro. Ele foi possivelmente o maior cirurgião do mundo em sua época, pioneiro das salas de cirurgia livres de germes no hospital Johns Hopkins e de uma escola de cirurgia chamada Escola da Segurança. Criou as hoje onipresentes luvas de borracha para uso por profissionais médicos, depois de ver médicos e enfermeiras esfregarem as mãos com desinfetantes químicos até deixá-las em carne viva.
Halsted não era um homem especialmente fácil de se gostar. Ao longo de sua vida, provavelmente em consequência dos picos e vales da dependência química, foi se tornando mais e mais rude, errático, irônico e raivoso. Mas é ele quem injeta alguma vivacidade áspera no plácido livro de Markel.

Tradução de Clara Allain

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