Mentor de melhor plano antidrogas europeu questiona internação forçada
O português João Goulão, chefe de agência europeia, afirma que a descriminalização de entorpecentes facilita tratamento de usuários
Desafiados pelo crescimento da população usuária de crack, os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro adotaram, no início deste ano, estratégias de tratamento baseadas na internação compulsória e involuntária dos dependentes químicos, em uma tentativa de acabar com suas cracolândias. Embora evite opinar sobre a política adotada no Brasil, João Goulão, chefe das agências de combate às drogas de Portugal e da Europa – e responsável por uma das políticas antidrogas mais respeitadas do mundo –, questiona a eficácia da estratégia, mas pondera: o crack impõe um desafio mais difícil a ser superado.
"A grande diferença é que o nosso problema principal era o consumo de heroína (em Portugal), e com a heroína nós dispomos de armas terapêuticas muito importantes, como a metadona. Enquanto que com o crack, ainda não dispomos de nenhum medicamento semelhante", afirmou o especialista, presidente do Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (OEDT), em entrevista ao Terra.
Há cerca de 40 dias, o governo do Estado de São Paulo implantou um plantão judicial no Centro de Referência de álcool, tabaco e outras drogas (Cratod), com juízes, advogados e representantes da Promotoria encarregados de autorizar a internação compulsória e involuntária de dependentes químicos, mediante recomendação médica. No primeiro mês de plantão, foram executadas 223 internações, das quais 206 foram voluntárias (as pessoas foram convencidas a aceitar o tratamento), 17 involuntárias (com a autorização da família) e nenhuma compulsória (quando não é necessária autorização prévia da família).
Já Portugal se livrou de suas "cracolândias" ao criar uma rede de tratamento dos dependentes, no final da década de 1990, baseada na abordagem personalizada e focada na "conquista da confiança" do usuário – na qual a interrupção do uso do entorpecente não era o foco inicial, mas a consequência da intervenção. Mas foi com a descriminalização do consumo de drogas, em 2001, que o país se tornou uma referência no assunto. No país, as drogas não são legalizadas, mas os usuários não sofrem punições criminais e são "dissuadidos" a abandonar o consumo com o tempo.
"O fato é que a descriminalização realmente favoreceu o nosso trabalho. Trouxe coerência e reduziu o estigma", avaliou. Com a medida, foi possível, por exemplo, que os agentes de saúde passassem a oferecer seringas descartáveis aos usuários de heroína, com o objetivo de diminuir a transmissão de doenças como a aids.
Apesar da experiência bem-sucedida, João Goulão diz que não se atreve a "exportar" o modelo português para outros países e é enfático ao afirmar que "cada país tem que encontrar seu próprio caminho".
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Terra - Como Portugal se livrou de suas "cracolândias"?
João Goulão - Nós tivemos uma realidade muito complicada e de, alguma forma, comparável ao fenômeno das cracolândias em algumas cidades portuguesas. Em Lisboa, tínhamos o bairro Casal Ventoso, que chegou a ser conhecido como o maior supermercado de drogas da Europa, marcado sobretudo pela presença da heroína. Em 1998, fizemos uma ação concentrada entre várias entidades, que por um lado buscava a reabilitação urbana do bairro e, por outro lado, focava em uma intervenção das forças policiais, mas sempre acompanhadas por equipes de saúde. E quando houve uma intervenção mais espetacular, digamos assim, nós já tínhamos uma estrutura capaz de dar respostas na área de saúde, resgatando e respeitando algumas das necessidades mais básicas daquela população. Isso aconteceu antes de aprovarmos aquelas medidas mais emblemáticas da política antidrogas adotadas por Portugal, entre elas a descriminalização. O sucesso dessa intervenção foi o uso de uma postura humanista.
Terra - Quais as impressões que o senhor teve ao conhecer pessoalmente a cracolândia paulista?
Goulão - É muito parecido com a realidade que a gente vivia em Lisboa há mais de uma década e o grau de degradação das pessoas que por ali andavam é muito comparável. A grande diferença, em termos de capacidade de intervenção, é que o nosso problema principal era o consumo de heroína. E com a heroína nós dispomos de armas terapêuticas muito importantes, como a metadona, que é uma terapêutica de substituição que permite evitar que as pessoas tenham ataques e sofram pela falta da heroína. E com o crack não dispomos, não há medicamentos com características semelhantes. Portanto, a intervenção "médica" para os usuários de crack é mais complicada, pela inexistência de uma terapêutica. Porque, de fato, as pessoas estão completamente desprovidas de qualquer daquilo que chamamos força de vontade. A verdade é que é muito difícil conquistar a confiança delas (nessa situação) e convencê-las da necessidade de se submeterem a um tratamento.
A internação compulsória funciona? A princípio, sou contra. Porque o internamento compulsivo é necessariamente limitado no tempo
João Goulãopresidente do Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (OEDT)
Terra - São Paulo implantou recentemente um plantão judiciário para viabilizar a internação compulsória e involuntária dos dependentes químicos. Portugal adotou algo semelhante?
Goulão - Não. Em Portugal não tivemos a necessidade de trabalhar com internação compulsória propriamente dita. A nossa estratégia era de convidar as pessoas (a visitar os centros de saúde), oferecendo às pessoas algumas possibilidades de atender às suas necessidades mais básicas: tomar um banho, colocar uma roupa limpa, comer. Depois, fomos convidando as pessoas a se tratarem, sem forçar ninguém. Tentamos também identificar se as pessoas tinham doenças contagiosas, como tuberculose, e aí oferecemos a realização de exames de radiografia, por exemplo, além de consultas. Enfim, aos poucos fomos desenvolvendo para cada uma delas um plano individual. Não foi uma intervenção massificada pura e simples. Tentamos corresponder às necessidades que cada uma dessas pessoas tinha.
Terra - Qual a sua opinião sobre a eficácia da internação à força?
Goulão - Eu não me atrevo em emitir um juízo de opinião, porque não conheço a realidade de São Paulo de perto. Eu penso que cada problema e cada realidade exige a busca de soluções que não são exportáveis. Não me atrevo a tentar exportar o modelo de tratamento que adotamos aqui em Portugal para realidades diferentes da nossa. Em abstrato, se me perguntam: a internação compulsória funciona? A princípio, sou contra. Porque o internamento compulsivo é necessariamente limitado no tempo. E o que acontecia, em Portugal, é que as pessoas, assim que saíam dessas estruturas de tratamento, invariavelmente recaíam (sobre o uso da droga). Então não representava uma solução realmente consolidada. Mas repito: não me atrevo a dizer, no caso concreto de São Paulo. Quero crer que as autoridades estão agindo da melhor forma.
Terra - Em Portugal as empresas abraçaram o programa de reinserção social dos dependentes químicos. Como vocês conseguiram convencer as empresas a dar empregos às pessoas em tratamento?
Goulão - Há uma circunstância também que eu penso que é bastante diferente da realidade do Brasil e da realidade de Portugal. Neste bairro, o Casal Ventoso, nós não encontrávamos apenas pessoas das classes mais desfavorecidas e mais marginais, nem minorias étnicas, nem nada. Encontrávamos ali os filhos de gente pobre, mas também estavam os filhos das classes médias e os filhos das classes altas. Ou seja, era algo completamente transversal na sociedade portuguesa. As vítimas dessas situações eram filhos de empresários, filhos de políticos, filhos de todas as classes sociais. Quando isso acontece, as pessoas pensam: 'o meu filho não é um criminoso, o meu filho é um bom rapaz e quando se curar vai precisar de um lugar para trabalhar. Se eu vou encontrar oportunidade para o meu filho, tenho que ajudar também os filhos dos outros'. Então o governo fez parcerias com as empresas para incentivar a contratação de pessoas reabilitadas, e aos poucos a atitude da sociedade em geral foi se modificando, porque muitas dessas oportunidades se revelaram positivas. Mas no Brasil, penso que os fenômenos das cracolândias estão ainda muito ligadas à pobreza e à marginalização, então não existe uma sensibilização transversal na sociedade, como ocorreu em Portugal.
Terra - O que a descriminalização das drogas influenciou sobre o trabalho de vocês?
Goulão - A grande virtude da descriminalização foi dar coerência a todas estas medidas que fomos tomando. Porque há um pressuposto em todas essas intervenções: que isso é uma doença e que se conseguem muito mais benefícios pelos tratamentos e cuidados com a saúde, muito mais que com a prisão. A partir daí, as intervenções preventivas passaram a abordar as consequências que o uso de drogas traz para a vida dessas pessoas, não as consequências criminais. E a intervenção para tratamento tornaram-se mais fáceis, porque as pessoas passaram a deixar nos aproximar, porque sabem que terão tratamento, com a certeza que isso não lhes traz quaisquer consequências com a polícia ou com a Justiça. Com isso, em um determinado momento em meados da década passada, nós tínhamos cerca de 40 mil consumidores de heroína em tratamento, e mais de 40% dessas pessoas estavam a trabalhar.
Terra - Houve um aumento do consumo ou da procura por drogas após a descriminalização?
Goulão - Acontece que as forças policiais continuam a combater o tráfico de drogas já que elas não foram legalizadas, apenas os usuários passaram a não sofrer punições legais, e isso é uma ação importante. E as forças policiais ficaram livres de ter de lidar com processos intermináveis por mero consumo e puderam dirigir seus recursos para o combate ao grande tráfico.
Terra - Como é o bairro Casal Ventoso hoje?
Goulão - Foi reabilitado do ponto de vista urbanístico. Perdeu o status de supermercado de drogas. Mas vai e vem. De vez em quando há um aumento do tráfico naquele bairro, mas aí tem intervenções que evitam que ele volte a ser o que era antes.
Terra - E como conquistar a confiança dos usuários de crack especificamente?
Goulão - Isso depende muito do contato continuado com os profissionais de saúde, pela insistência em se ganhar essa confiança através de pequenos passos. Não focando muito no objetivo de interromper o consumo, mas proporcionando formas de cuidarem um pouco, mesmo que esse consumo se mantenha. Acho que não se pode colocar como condição prévia a qualquer intervenção o fim do consumo da droga. Isso acaba por vir mais tarde, quando de fato as pessoas confiam que não vão ser humilhadas, não vão ser maltratadas, pelo contrário, quando elas percebem que esses agentes que as abordam nas ruas querem ajudá-las. Mas também diria que cada país tem que encontrar seu próprio caminho. Infelizmente, não há uma receita que seja possível exportar de um país para o outro.
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