Hélio Schwartsman
Drogas e assassinatos
A precoce morte do nosso Glauco nas terríveis circunstâncias em que ocorreu já deslancha na internet um movimento pedindo a proibição do chá psicotrópico consumido nas cerimônias religiosas do Santo Daime.
Discrepo. E aqui, para gáudio dos radicais, minha discordância é absoluta. Não estou de acordo nem com a liberação dessa droga apenas para fins religiosos, como sugere a resolução nº 01/2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), publicada no Diário Oficial no dia 25 de janeiro passado, nem com uma eventual proscrição da mistura herbal.
Essa posição, aparentemente contraditória, se explica porque aqui estamos discutindo dois problemas distintos. De um lado, a questão tem a ver com o estatuto dos cultos e as prerrogativas de grupos religiosos e, de outro, com a proibição do uso de drogas. E eu não acho nem que fiéis de nenhuma crença devam ter direitos que não sejam automaticamente estendidos a todos os cidadãos, nem que caiba ao Estado decidir o que as pessoas podem ou não colocar dentro de sua corrente sanguínea.
Comecemos pela questão dos templos. Embora eu seja o sumo sacerdote de um culto reconhecido pelo Estado (para saber mais, leia a coluna "O primeiro milagre do heliocentrismo"), não vejo com bons olhos a concessão de direitos especiais ou imunidades tributárias para religiões. Exceto em casos extremos muito especiais, as leis devem ser iguais para todos. E, quando falo em extremos, quero dizer extremos mesmo. Penso, por exemplo, em índios isolados que matam seu filhos gêmeos recém-nascidos, por acreditar, sabe-se lá com base em quais crenças religiosas, que eles trazem maldições. Não faria sentido nenhum processar esses aborígenes como homicidas dolosos --e com quase todos os agravantes previstos no Código Penal. Evidentemente, a situação muda de figura se o autor do infanticídio formos eu, você ou qualquer índio já aculturado, em que pese as dificuldades de definir este conceito.
A igualdade jurídica por certo não resolve problemas como a injustiça social, o racismo etc. Em determinados casos, pode até agravar iniquidades --cobramos o conhecimento da lei tanto do sujeito com pós-graduação em Direito quanto de um analfabeto. Ainda assim, é a única igualdade objetivamente implementável e que pôde, ainda que imperfeitamente, ser introduzida no ordenamento jurídico dos Estados modernos. E não há dúvida de que produz mais bem do que mal. Eu, por exemplo, vestindo o véu da ignorância proposto por John Rawls, odiaria viver em qualquer época ou país que de alguma forma estabelecesse direitos diferenciados para os amigos do rei.
(E a razão por que é tão difícil impor qualquer isonomia que não a jurídica é muito simples: as pessoas não são iguais. Elas variam em força, inteligência, higidez, altura, capacidade para o trabalho, grau de loucura, religiosidade, compleição física etc. Na verdade, é exatamente essa exuberância que torna a humanidade interessante).
Voltando à questão do Daime, ou ayahuasca, embora não se conheçam exatamente todos os seus princípios ativos e existam poucos estudos controlados sobre as substâncias já identificadas --a dimetiltriptamina (DMT) e alguns alcaloides inibidores de monoamina oxidase (iMAO)--, não há nenhuma dúvida de que a ayahuasca pertence ao grupo das drogas alucinógenas. Como tal, tende a fazer mais mal do que bem. É até possível que ela possa ser utilizada em terapias de substituição para dependentes químicos. Até onde se sabe, seu impacto sobre a saúde do usuário contumaz não é tão devastador quanto o do crack, da heroína ou mesmo do álcool. Mas, de novo, não existem trabalhos científicos que autorizem fazer esse tipo de afirmação.
Embora termos como "substâncias proibidas" e "drogas legais" nos pareçam categorias naturais, é preciso antes de mais nada responder se o Estado deve ter o poder de estabelecer o que os cidadãos estão ou não autorizados a fazer com seus próprios corpos. De minha parte, acho que não. Eu, pelo menos, não teria assinado nenhum contrato de adesão que desse à "operadora" o direito de decidir o que eu vou comer, beber ou injetar em mim mesmo.
O poder do Estado de proibir só se legitima quando entram em jogo interesses de terceiros. Para colocar as coisas de modo simples, eu posso beber até cair, mas, se o fizer, não posso dirigir, pois, neste caso, representaria uma ameaça bastante concreta à vida e à segurança de gente que não escolheu tomar um trago.
Assim, por paradoxal que pareça, sou contra a regulamentação do uso de drogas específica para grupos religiosos como também contra o banimento legal de qualquer substância psicoativa. O que faria sentido, aí sim, é o Estado regulamentar o seu uso, criando, por exemplo, normas contra a operação de máquinas sob influência desses fármacos ou estabelecendo idade mínima para consumi-los. É claro que alguém poderá argumentar que o assassino só atirou porque estava sob efeito da droga. É possível. Mas, não é demais lembrar que já existem leis contra atirar nas pessoas e até mesmo contra andar armado sem uma autorização especial. O problema é que criminosos insistem em descumpri-las.
O que ocorreu com a família de Glauco foi uma tragédia, à qual todos estamos sujeitos (e o fato de ela atingir um colega de trabalho serve como um "memento mori", a nos lembrar da transitoriedade da vida). Pelo que se sabe até agora --e a história ainda tem pontos nebulosos--, é difícil dizer que a droga não contribuiu para o desfecho. Distribuição gratuita de alucinógenos, gostemos ou não, funciona como um ímã para toda espécie de malucos, a maioria inofensivos, mas nem todos. E, de qualquer forma, o mesmo poderia ser dito do interesse genuíno do Glauco em ajudar pessoas em dificuldades e da própria religiosidade que, afinal, pôs os atores em contato. Ou da facilidade com que ainda se adquirem armas de fogo no país.
A grande verdade é que coisas ruins acontecem o tempo todo, sem que precisemos ficar buscando culpados. E ficar sem o Glauco, que frequentemente nos arrancava o primeiro sorriso do dia com suas deliciosas charges na página 2 da Folha, é uma delas.
Drogas e assassinatos
A precoce morte do nosso Glauco nas terríveis circunstâncias em que ocorreu já deslancha na internet um movimento pedindo a proibição do chá psicotrópico consumido nas cerimônias religiosas do Santo Daime.
Discrepo. E aqui, para gáudio dos radicais, minha discordância é absoluta. Não estou de acordo nem com a liberação dessa droga apenas para fins religiosos, como sugere a resolução nº 01/2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), publicada no Diário Oficial no dia 25 de janeiro passado, nem com uma eventual proscrição da mistura herbal.
Essa posição, aparentemente contraditória, se explica porque aqui estamos discutindo dois problemas distintos. De um lado, a questão tem a ver com o estatuto dos cultos e as prerrogativas de grupos religiosos e, de outro, com a proibição do uso de drogas. E eu não acho nem que fiéis de nenhuma crença devam ter direitos que não sejam automaticamente estendidos a todos os cidadãos, nem que caiba ao Estado decidir o que as pessoas podem ou não colocar dentro de sua corrente sanguínea.
Comecemos pela questão dos templos. Embora eu seja o sumo sacerdote de um culto reconhecido pelo Estado (para saber mais, leia a coluna "O primeiro milagre do heliocentrismo"), não vejo com bons olhos a concessão de direitos especiais ou imunidades tributárias para religiões. Exceto em casos extremos muito especiais, as leis devem ser iguais para todos. E, quando falo em extremos, quero dizer extremos mesmo. Penso, por exemplo, em índios isolados que matam seu filhos gêmeos recém-nascidos, por acreditar, sabe-se lá com base em quais crenças religiosas, que eles trazem maldições. Não faria sentido nenhum processar esses aborígenes como homicidas dolosos --e com quase todos os agravantes previstos no Código Penal. Evidentemente, a situação muda de figura se o autor do infanticídio formos eu, você ou qualquer índio já aculturado, em que pese as dificuldades de definir este conceito.
A igualdade jurídica por certo não resolve problemas como a injustiça social, o racismo etc. Em determinados casos, pode até agravar iniquidades --cobramos o conhecimento da lei tanto do sujeito com pós-graduação em Direito quanto de um analfabeto. Ainda assim, é a única igualdade objetivamente implementável e que pôde, ainda que imperfeitamente, ser introduzida no ordenamento jurídico dos Estados modernos. E não há dúvida de que produz mais bem do que mal. Eu, por exemplo, vestindo o véu da ignorância proposto por John Rawls, odiaria viver em qualquer época ou país que de alguma forma estabelecesse direitos diferenciados para os amigos do rei.
(E a razão por que é tão difícil impor qualquer isonomia que não a jurídica é muito simples: as pessoas não são iguais. Elas variam em força, inteligência, higidez, altura, capacidade para o trabalho, grau de loucura, religiosidade, compleição física etc. Na verdade, é exatamente essa exuberância que torna a humanidade interessante).
Voltando à questão do Daime, ou ayahuasca, embora não se conheçam exatamente todos os seus princípios ativos e existam poucos estudos controlados sobre as substâncias já identificadas --a dimetiltriptamina (DMT) e alguns alcaloides inibidores de monoamina oxidase (iMAO)--, não há nenhuma dúvida de que a ayahuasca pertence ao grupo das drogas alucinógenas. Como tal, tende a fazer mais mal do que bem. É até possível que ela possa ser utilizada em terapias de substituição para dependentes químicos. Até onde se sabe, seu impacto sobre a saúde do usuário contumaz não é tão devastador quanto o do crack, da heroína ou mesmo do álcool. Mas, de novo, não existem trabalhos científicos que autorizem fazer esse tipo de afirmação.
Embora termos como "substâncias proibidas" e "drogas legais" nos pareçam categorias naturais, é preciso antes de mais nada responder se o Estado deve ter o poder de estabelecer o que os cidadãos estão ou não autorizados a fazer com seus próprios corpos. De minha parte, acho que não. Eu, pelo menos, não teria assinado nenhum contrato de adesão que desse à "operadora" o direito de decidir o que eu vou comer, beber ou injetar em mim mesmo.
O poder do Estado de proibir só se legitima quando entram em jogo interesses de terceiros. Para colocar as coisas de modo simples, eu posso beber até cair, mas, se o fizer, não posso dirigir, pois, neste caso, representaria uma ameaça bastante concreta à vida e à segurança de gente que não escolheu tomar um trago.
Assim, por paradoxal que pareça, sou contra a regulamentação do uso de drogas específica para grupos religiosos como também contra o banimento legal de qualquer substância psicoativa. O que faria sentido, aí sim, é o Estado regulamentar o seu uso, criando, por exemplo, normas contra a operação de máquinas sob influência desses fármacos ou estabelecendo idade mínima para consumi-los. É claro que alguém poderá argumentar que o assassino só atirou porque estava sob efeito da droga. É possível. Mas, não é demais lembrar que já existem leis contra atirar nas pessoas e até mesmo contra andar armado sem uma autorização especial. O problema é que criminosos insistem em descumpri-las.
O que ocorreu com a família de Glauco foi uma tragédia, à qual todos estamos sujeitos (e o fato de ela atingir um colega de trabalho serve como um "memento mori", a nos lembrar da transitoriedade da vida). Pelo que se sabe até agora --e a história ainda tem pontos nebulosos--, é difícil dizer que a droga não contribuiu para o desfecho. Distribuição gratuita de alucinógenos, gostemos ou não, funciona como um ímã para toda espécie de malucos, a maioria inofensivos, mas nem todos. E, de qualquer forma, o mesmo poderia ser dito do interesse genuíno do Glauco em ajudar pessoas em dificuldades e da própria religiosidade que, afinal, pôs os atores em contato. Ou da facilidade com que ainda se adquirem armas de fogo no país.
A grande verdade é que coisas ruins acontecem o tempo todo, sem que precisemos ficar buscando culpados. E ficar sem o Glauco, que frequentemente nos arrancava o primeiro sorriso do dia com suas deliciosas charges na página 2 da Folha, é uma delas.
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