Wagner Giudice, diretor do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil de São Paulo, diz que educar a população pode levar à diminuição no consumo de drogas
A voz grave e confiante, a postura altiva e o olhar compenetrado do delegado Wagner Giudice escondem uma verdade: Giudice é um homem pressionado e que se incomoda com as cobranças que recebe. Há um ano ele é o diretor do Denarc, o Departamento da Polícia Civil de São Paulo responsável pelo combate ao narcotráfico. “É um trabalho muito duro”, diz o delegado de 46 anos, 23 deles na polícia. “Há uma pressão terrível em cima da gente. Todo mundo acha que vamos resolver o problema das drogas.” A questão que se levanta é: o que significa “resolver o problema das drogas”? Tolerar o consumo? Liberar a compra e venda de drogas? Todas as drogas? Ou a solução é erradicar as drogas do planeta? Como? Num assunto cujo debate costuma ser polarizado por opiniões extremistas, o delegado Giudice tenta evitar radicalismos. Ele tem consciência da impossibilidade de um mundo livre de entorpecentes. Sabe que sempre haverá pessoas interessadas no uso de substâncias que alteram a consciência. Mas acha temerário liberar o uso das drogas. “É algo complicado”, diz. Por fim, admite: sendo impossível coibir esse comércio, lutar contra as drogas é um trabalho parecido com “enxugar gelo”. Mas é um trabalho que deve ser feito, afirma. “Se você não enxugar o gelo vai ficar uma poça embaixo”. Abaixo, entrevista concedida a EPOCA.
Época: Como vencer a guerra contra as drogas?
Wagner Giudice: Antes de tudo, o combate às drogas passa pela educação. Acho que todas as polícias que trabalham com combate ao narcotráfico têm essa noção. O país que mais gasta dinheiro no combate às drogas é os Estados Unidos. Mesmo assim a droga continua presente. Por isso, num primeiro momento, a educação é o primeiro passo para que a gente tenha bons resultados. Num segundo momento, aí sim entra a repressão e o que vemos hoje em dia.
Época: Combater o consumo então é o primeiro passo?
Giudice: Sim, é preciso convencer as pessoas de que as drogas fazem mal. E os resultados no curto e no longo prazos são perniciosos para o ser humano. Uma vez entendido isso, eu presumo que o consumo caia drasticamente. Caindo o consumo, o fornecedor terá menos mercado e aí facilita o combate.
Época: Mas não existe sempre uma parcela da população com tendência a transgredir regras?
Giudice: Isso é uma coisa interessante. De cada 100 pessoas que provam drogas, de 10 a 13 terão muitos problemas em abandonar o uso. A ciência não consegue explicar isso. Para algumas pessoas, o prazer do uso é maior que a vontade delas de largá-la. É o caso do crack, que tem um poder viciante muito grande. Dizem que de cada dez pessoas que provam, nove terão muita dificuldade em largar. Ele causa uma sensação de bem estar em quem usa em curtíssimo prazo e, no longo prazo, provoca efeitos devastadores na saúde do usuário.
Época: O senhor acha que o crack é mesmo uma epidemia?
Giudice: Acho que o crack é um problema muito sério. O usuário de crack rompeu muitas barreiras morais: mora na rua, se droga na rua, dorme no lixo, come comida do chão, adota a promiscuidade... o usuário de maconha, ecstasy ou cocaína se esconde em nichos e não se expõe socialmente. O usuário de crack perde essas barreiras. É uma droga tão viciante que o leva a romper barreiras morais. E aí ele fica exposto à luz do dia num processo de degradação à vista de todos. Engraçado é que as pessoas que fazem marcha pela maconha criticam o crack. Mas o traficante que fornece a droga é o mesmo. São coisas que andam juntas, não adianta dissociá-las.
Época: O senhor falou em reprimir o consumo. E qual a importância do papel da polícia?
Giudice: A polícia faz o papel da repressão. Atua para impedir que a droga alcance o consumidor. Mas vivemos um paradoxo. As legislações do mundo em geral são liberais para o usuário e demonizam o traficante. Você tem de combater o tráfico mas ser condescendente com o usuário. No Brasil hoje ele não é preso. Nem é obrigado a se tratar. O que a gente propõe é que esse usuário seja obrigado a se tratar. Seja obrigado a ter de largar droga. As legislações mais modernas do mundo vão nesse sentido.
Época: O senhor é favorável à internação compulsória?
Giudice: Eu acho que deve isso ser discutido com todos os setores da sociedade. Acho que deve haver alguma obrigação para o usuário se livrar do vício. É preciso ver a forma como isso seria feito. Por exemplo, uma pessoa que é pega pela primeira vez com drogas precisaria ser internada? Talvez o problema dela seja resolvido com uma conversa com os pais. Ou bastaria um acompanhamento ambulatorial e psicoterapias. Se ele for reincidente, aí talvez seja necessária internação compulsória. Mas isso deve ser discutido de forma ampla.
Época: Qual sua avaliação sobre as ações da Cracolândia?
Giudice: Olha, apesar das críticas que (a ação) sofreu, e é natural que sofresse – uma vez que qualquer ação seria alvo de críticas – acho que foi positiva. Por quê? Porque conseguiu debelar aquele aglomerado de gente que estava se tornando agressiva. Espalhou. “Ah, mas não prenderam ninguém”, alguém diz. A prisão de traficantes será conseqüência disso. Hoje o usuário está mais vulnerável à ação de agentes sociais. Um agente de saúde pode se aproximar com maior facilidade, porque ele não estará mais no meio de um grupo de usuários transtornados pela droga. Para o agente social ficou mais fácil a aproximação.
Época: Mas agentes sociais criticaram a ação da Polícia e dizem que o efeito foi o contrário – que o trabalho deles foi prejudicado.
Giudice: Os policiais conseguem se aproximar dos caras com maior facilidade, eles estão menos agressivos e mais propícios a conversar. Quando íamos lá, os usuários protegiam os pequenos traficantes. Era difícil agir. Agora passamos a enxergar a ação do traficante com mais clareza. Mas acho que só teremos uma leitura completa do cenário em algumas semanas.
Época: Quem apoiou a ação da PM disse que era obrigação do Estado retomar uma área degradada, tomada por usuários e traficantes.
Giudice: A Cracolândia nunca foi um lugar onde a polícia não entrasse. Tanto é verdade que no ano passado fizemos 200 flagrantes lá dentro. A Cracolândia de fato era um refúgio dos usuários. Eles se sentiam confortáveis. E quanto mais gente chegava mais difícil era a ação policial. A gente sofreu muitos ataques por parte deles. De qualquer modo, a sensação para quem passava lá era muito ruim. Era algo horrível em todos os aspectos – estético, de higiene e de humanidade. Era questão de tempo acontecer uma coisa dessas. Eu estou vendo isso há um ano, quando vim para cá. Usuários são muito resistentes em sair de lá. É um negócio impressionante. A PM vai lá com um aparato forte, e eles insistem em voltar. Vai levar uns dias para eles entenderem que não poderão mais voltar para lá. Essa é a verdade. Vivemos o começo do fim da Cracolândia.
Época: É inevitável?
Giudice: Não vai voltar. O Estado não vai permitir. Seria uma derrota deixar que aquilo volte. Agora, a ação pode gerar efeitos colaterais, como a migração para outras áreas da cidade. Cabe a nós da polícia evitar que isso aconteça. E aí quem sabe ocorra um uso mais discreto, dentro de casas, hotéis. Pode ser que a gente chegue nisso.
Época: Mas o Estado não tem de oferecer tratamento aos usuários?
Giudice: O Estado tem de dar isso. Opção de internação. É importante a polícia debelar e o Estado dar oportunidade de tratamento. O jogo está em equilibrar isso.
Época: O Brasil não dá muita ênfase à questão policial no combate às drogas?
Giudice: Eu sou policial por formação é, por isso, fui levado a pensar mais nesse aspecto. Mas é preciso subir no topo da pirâmide e enxergar tudo que tem em volta. O uso de crack é reflexo de um problema social. Compete a todos nós darmos a nossa contribuição. A polícia e todas as áreas. O que não pode é engolir legislação que é feita por meia dúzia que têm pouco conhecimento do assunto e a polícia que se vire para aplicar essa lei.
Época: De que legislação o senhor está falando?
Giudice: A legislação repressiva da droga. Tem de ter a parte de repressão, mas e a parte do usuário? Escrever (na lei) que tem de ser tratado, mas como? Só escrever? E o aparato para tratar dessa gente? Isso tem de ser seriamente tratado. A legislação não pode ser casuística, tem de ter base objetiva para que a gente possa tratar essas pessoas.
Época: O senhor acha que a polícia está preparada para lidar com o usuário?
Giudice: Não. Acho que o usuário é um capítulo a parte nessa história. Ele tem completa ojeriza pela polícia. Anualmente recebemos no Denarc de 400 a 500 encaminhamentos de usuários. Muitos chegam trazidos pelos pais e amigos e acham que a polícia vai ser agressiva, vai maltratar, bater, vai acontecer. O próprio usuário tem muito problema com a polícia. Por isso temos de fazer uma aproximação com o usuário.
Época: Mas o policial não é, muitas vezes, truculento com usuários?
Giudice: Eu acho que é cultural. Por mais que você trate o usuário dentro da lei ele ainda se sente agredido. Ele acha que tem o direito de usar e que a polícia não pode se intrometer na vida dele.
Época: Quando eu perguntei se a polícia está preparada para lidar com o usuário, o senhor disse que não. Não está preparada em que sentido?
Giudice: De fazer essa aproximação com o usuário e convencê-lo a se tratar. Agora, truculência é um problema de cada policial. Tem cara (policial) que gosta de bater nos outros, tem cara que não gosta. Vou te contar um caso que aconteceu na semana passada, na sexta-feira. Pegamos um sujeito, um usuário que se tornou microtraficante. Enquanto era feito um laudo, ele dormiu numa cadeira, num canto da delegacia. Umas três horas depois, quando o laudo de constatação da droga ficou pronto, ele acordou. Um pessoal daqui da delegacia tinha comprado pão, queijo, presunto, refrigerante para um lanche da tarde. Ofereceram para ele. Ele comeu quatro sanduíches. Depois comeu bolo, doce, tudo que tinha na delegacia. Quando chegou a hora de enviá-lo ao presídio, ele pediu para ficar aqui, disse que fazia muito tempo que não era bem tratado. Ele até se ofereceu para ajudar em alguma coisa. Por quê? Ele viu que não fomos agressivos com ele. Dificilmente tem algum tipo de violência contra usuário aqui no Denarc. Já houve no passado.
Época: Mas o policial, de modo geral, não trata o usuário como um vagabundo?
Giudice: Principalmente os mais antigos. Os mais novos tem uma educação mais humanista.
Época: O jornalista italiano Roberto Saviano escreveu no livro A Beleza e o Inferno que a “cocaína era o produto de mais sucesso da história do capitalismo”. O senhor concorda?
Giudice: É um caso a se pensar, heim? (Risos) É uma frase forte. Pode ser. Dificilmente alguém vai defender a cocaína em público, mas ela tem um glamour inegável na alta sociedade. Tudo isso contribui para que ela continue sendo usada. A cultura ocidental se adaptou à cocaína de uma maneira muito forte. É algo impressionante.
Época: Se sempre existem pessoas interessadas em usar drogas e pessoas querendo vendê-las, acha possível realmente um mundo livre de drogas?
Giudice: Debelar completamente, não, mas é possível diminuir muito a incidência.
Época: O que o senhor considera um sucesso na luta contras as drogas?
Giudice: Diminuir de maneira muito drástica as conseqüências do uso de drogas – usuário largar a família, estudo, trabalho, morrer...
Época: E o tráfico?
Giudice: Além de vender o produto causador desses problemas, ele traz a violência: extermínio do usuário que não paga, matar o concorrente, cometer outros crimes seqüestro, roubo a banco, roubo a carro, residência, enfim... formas de não ficar descapitalizado caso a polícia faça uma grande apreensão de droga. O efeito das drogas não se restringe a destruir vidas de usuários. Tem um corolário de violência que traz com ele.
Época: Se a polícia prende o pequeno traficante, logo esse espaço será ocupado por outra pessoa. Se prender um grande “barão do tráfico”, outro vai assumir o espaço deixado. Dessa forma, o trabalho da polícia não é como enxugar gelo?
Giudice: É, mas se você não enxugar o gelo vai ficar uma poça embaixo, né ? (risos). Sem dúvida, é um trabalho que às vezes você se questiona muito. Mas é um trabalho que precisa ser feito. E constantemente. Eu trabalhei dez anos na Delegacia Anti Seqüestro. Conseguimos baixar o número de 300 para 30. No Narcotráfico você nunca tem a exata noção de onde você está. Você tem sensação, mas nunca exata noção. Quem pode dizer o quanto de droga rola no mundo? Só temos estimativas de estimativas. Quando você apreende muitas toneladas de droga, o que significa? Que você está fazendo um bom trabalho ou que há uma quantidade absurda de droga? E quando você apreende pouco? É que tem pouca droga no mercado ou você está sendo pouco eficiente? É um paradoxo. A gente trabalha assim: estima-se a quantidade produzida de droga e compara com a quantidade apreendida. Mas nunca dá para ter certeza de nada.
Época: Como funciona o tráfico em São Paulo?
Giudice: O Brasil não produz droga. E a cocaína que chega a São Paulo vem da Bolívia – 80% da produção boliviana vem para o Brasil. Estima-se que eles produzam 115 toneladas de droga por ano. Tem brasileiro que domina a produção, que é exportada para cá. A maior parte da droga entra de caminhão pelo oeste do Estado. Pouca coisa em pequenos aviões. Hoje os traficantes não transportam grandes quantidades. Não passa de 50 kg ou 60kg. Porque, se houver intervenção policial a perda é menor. Em São Paulo, eles transformam a cocaína, que vem em pasta, para ser vendida no varejo. Nesses pequenos laboratórios, o sujeito embala, repassa para um terceiro, que vende na rua. O negócio é muito dissolvido. E tem gente insuspeita que investe no negócio. Gente que conhece o traficante que faz o transporte. É um lucro gigantesco.
Época: É pulverizado.
Giudice: Muito pulverizado, muito espalhado. A gente fez muitas ações na Cracolândia no ano passado. Eu achava que havia um grande barão atuando por lá. Uma mentira. Num laboratório da periferia tem um dono. Em outro laboratório, outro dono. Todos são fornecedores. Há poucos dias prendemos um garoto de 19 anos que preparava droga.
Época: Essa pulverização dificulta do trabalho da polícia?
Giudice: É difícil para a gente. Todo dia uma novidade, tem de mapear da melhor forma que puder.
Época: A sociedade reclama que a polícia só prende pequenos traficantes. Por que não prende os grandes traficantes?
Giudice: Chegar nesses sujeitos demanda tempo, eles são muito bem protegidos e a legislação não facilita o nosso trabalho.
Época: Como assim?
Giudice: Para chegar nesse sujeito você precisa abrir tantos sigilos bancários, telefônicos.. há muita resistência para isso. A legislação, que garante direitos individuais, acaba impedindo o trabalho. Mesmo a Polícia Federal, atuando na fronteira, tem dificuldade... A legislação facilita o trabalho em quem coloca a mão na droga. A associação com o tráfico é tênue e difícil de ser provada. Mas já não estamos na época do Pablo Escolar ou Scar Face. Hoje em dia há muitos pequenos e médios traficantes. Mas é muito dinheiro e tem muita gente disposta a se arriscar por ele.
Época: Em grandes cidades do mundo o consumo de drogas é maior que em metrópoles brasileiras, mas o tráfico não é tão violento e o consumo é mais discreto.
Giudice: Não existe Cracolândia apenas em São Paulo, existe no Brasil inteiro e mundo. Na década de 90, havia uma Cracolândia igual ou pior à nossa em Nova York. Com ações sociais e policiais, hoje não existe mais. O Brasil vai enfrentar os problemas que São Paulo está enfrentando.
Época: No Brasil a questão das drogas não saiu do controle? A sensação de insegurança que o tráfico provoca na população não é maior aqui do que em outros países?
Giudice: Os lugares mais pobres do Brasil são muito sensíveis à ação desses criminosos. Favelas são pontos usados pelos traficantes se esconderem e distribuírem droga. A própria configuração das nossas cidades propicia isso – as favelas no Rio, a periferias em São Paulo. Somado a isso têm a falta de educação, de saúde... é um caldeirão que propicia a ação mais ostensiva de traficantes armados, querendo mostrar um poder paralelo.
Época: O Senhor é favorável à descriminalização das drogas?
Giudice: Não.
Época: Por quê?
Época: Não estamos preparados. Não temos cultura para isso. Primeiro, o sujeito tem de estar muito ciente do que está fazendo. Um povo desamparado e mal educado não pode estar à mercê da droga. Ele tem de ter possibilidade de escolha, mas escolha estudada.
Época: Como assim?
Giudice: O Brasil é um país de iletrados. Quem lê não entende...Qual poder de escolha dessa pessoa? Vai ser uma vítima do uso da droga. Ele sabe que é errado (uso de drogas) e só isso. Mas por que é errado, os efeitos da droga em que usa, não sabe.
Época: O que o senhor acha que poderia acontecer se o Brasil aprovasse a descriminalização do uso?
Giudice: Eu não consigo imaginar. Acho que, num primeiro momento, teríamos um consumo desenfreado. E quem venderia a droga? Isso me preocupa muito. Por isso eu digo, que é algo complicado. Quem vai controlar a droga?
que piada esse delegado rsrsr
ResponderExcluiralguem acredita no que ele diz ?