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Por: Marcone Formiga
Há poucos dias, o país inteiro e até muitas nações acionaram o painel de alarme depois que foram exibidas imagens de traficantes de drogas, no interior da Paraíba, incentivando um garoto de dois anos e meio de idade a consumir um cigarro de maconha. No vídeo, a plateia formada pelos criminosos se divertia e exultava com aquele circo de horror ao qual submetiam a criança. O fato reflete e traduz a crise social que se forma em todo o Brasil, a partir da constatação de que a iniciação dos jovens no mundo das drogas ocorre em todos os níveis sociais e de forma cada vez mais precoce, já no próprio ambiente das primeiras séries escolares.
Soraya Escorel, Promotora de Justiça da Infância e Juventude de João Pessoa (PB), foi quem agiu rapidamente no caso da criança. Mestranda em Ciências Sociais pela UFPB, com estudos e pesquisas sobre a violência nas escolas, ela integra a Diretoria Executiva Nacional da ABMP - Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude. Especialista quando o tema envolve crianças, adolescentes e consumo de drogas, ela também é membro da Comissão Permanente de Infância, Juventude e Educação (Copeije), do Grupo Nacional de Direitos Humanos.
Na entrevista que segue, Soraya Escorel alerta para a gravidade do tema, ressaltando que o poder público, a família, a escola, a Igreja e a sociedade civil precisam agir o quanto antes em conjunto e investir num trabalho preventivo diante do problema devastador que são as drogas, que afeta todo o núcleo familiar. Ela explica que está prevalecendo uma inversão de valores nos relacionamentos entre pais e filhos. Com base em sua experiência diária, ela constata que muitos pais preferem se omitir e abandonar seus filhos dependentes de drogas, quando, na realidade, poderiam ajudar na sua recuperação.
Também defende um envolvimento coletivo, a partir de pilares essenciais, como a família, a escola, a igreja e também profissionais das várias áreas do conhecimento, inclusive da Justiça.
A promotora afirmou que a droga é como uma bomba-relógio. E se for o crack, o cuidado deve ser redobrado, porque seu uso, por uma única vez, já vicia. Como se não bastasse este risco, já existe um novo tipo de droga, a crackoína, uma mistura de crack e cocaína, que tem um efeito devastador no organismo dos usuários.
- O consumo de drogas não tem fronteiras, porque até crianças são iniciadas no vício. A senhora mesma, nestes dias, constatou que um garoto de dois anos foi filmado fumando um cigarro de maconha. Como nossa sociedade chegou a ponto tão fundo neste problema?
- A princípio, eu fiquei bastante chocada ao ver o vídeo, porque todas as pessoas estavam em extasiados ao verem a criança usando um cigarro de maconha, o que provocou até risadas nas pessoas que viam a cena lamentável. Isso já me deixou bastante preocupada, mesmo sem saber quem eram aqueles que estavam no local no momento em que a criança estava fumando. Depois, com o conhecimento do fato, por intermédio da própria mãe da criança, o que mais me chamou a atenção foi a confissão espontânea dela, ao afirmar que estava morando na casa de um traficante que, inclusive, já foi assassinado. Confirmou, ainda, que a criança utlizou a droga no mês de abril,época em que foi gravado o vídeo.
- Mas uma mãe permitir isso é grave, não é?
- Sem dúvida! Mas ela, ao depor, creio que até por questão de defesa, dado que também precisa ser investigado, afirmou que só aconteceu porque ela estava sendo pressionada, ameaçada por esse traficante, talvez até para que pudesse utilizar esse vídeo futuramente. Ela salientou que pediu a ele para que aquilo não ocorresse, mas, de fato, ocorreu. E ela citava isso com muita segurança, apesar dos seus 19 anos de idade, porque compareceu espontaneamente à promotoria, para se entregar. Ou seja, ela estava se sentindo acuada, preocupada com toda essa repercussão na mídia nacional, então se sentiu ameaçada e, principalmente, sentia que o filho estava sendo ameaçado. Afirmou também que sabia o risco que corria, pois quem se envolve com o tráfico sabe que fica muito vulnerável.
- A senhora acreditou na mãe da criança?
- O que mais chamava a atenção também era a coerência do que ela dizia: que, realmente, a criança estava utilizando a droga, mas, ao mesmo tempo, ela confirmava que colocava o filho em risco. Aquilo me tocou bastante, não só no cunho profissional, mas também como mãe. Nós, que somos mães e profissionais, sabemos que não podemos colocar nossos filhos em risco.
- A impressão que se tem é que as crianças conseguem drogas mais facilmente do que um chocolate. É assim mesmo?
- Eu creio que essa inversão de valores entre pais e filhos, nos relacionamentos, está prevalecendo nos lares e na família. Às vezes, pais e mães são os únicos a cuidar do desenvolvimento dos seus filhos junto aos adultos e idosos, de forma bem precoce, justamente por conta dessa inversão, desse abandono que prevalece dentro da própria casa. As pessoas pensam que uma criança está abandonada quando fica apenas sozinha nas ruas. Mas, de fato, a gente que trabalha na Justiça constata que muitas crianças e adolescentes estão abandonados nas suas próprias casas. Por isso, eles terminam não sendo bem instruídos e passam a ser uma presa fácil no mundo das drogas. Isso acontece porque esse mundo é atrativo, uma vez que existe um espaço muito grande a ser ocupado em todas as áreas dos jovens. Essa lacuna, que é deixada pela família, é preenchida exatamente pelo mundo fácil, no acesso à droga, e depois o jovem se inicia no tráfico, conseguindo inclusive se infiltrar facilmente, diante de tantas oportunidades. É importante acrescentar que isso independe da classe social e pode ser iniciado desde a infância e se estender até a adolescência, mesmo dentro da própria casa, sem que os pais percebam ou mesmo que finjam ou se enganem, dizendo que não veem nada. Pois admitir isso é difícil, principalmente porque exige que se reconheça a própria culpa também no fenômeno que ocorre com o filho.
- Como saber se uma criança ou um adolescente está se drogando?
- Para nós, que somos da área jurídica, é mais difícil poder responder uma pergunta como essa. Mas o que os peritos comentam é que a criança manifesta alguns sinais. É possível perceber quando uma criança está fazendo uso da droga, porque dá indícios, que podem ser por cansaço ou estados de euforia, porque a pessoa fica muito ativa. A droga tanto pode dar o sinal de que uma pessoa está em profunda depressão como também em êxtase constante. A partir daí, começa a querer vender coisas dentro de casa, furtar joias e peças de decoração da casa para comprar droga. Outra manifestação é que os jovens não querem ir para a escola ou estão muito deprimidos. Além disso, dão pistas de que estão se envolvendo com pessoas que não são condizentes com a educação que recebem...
- O que a senhora sugere para uma situação como essa?
- É necessário estar presente na vida dos filhos. A partir do momento em que participamos do mundo deles, no dia-a-dia, conversando com eles, podemos perceber como eles estão, se precisam de ajuda e, de forma precoce, poderemos até afastar isso de suas vidas, se eles já se iniciaram no vício da droga. Existem meios de se prevenir, porque quem tem filhos não pode nunca julgar que isso não vai acontecer com eles. É preciso ler, se atualizar e estar sempre preparado para que não ocorram fatos como esses que a gente vê na imprensa. Mas, para isso, é necessário que pais, mães e escolas estejam bastante atentos.
- A escola não poderia funcionar como um suporte para evitar que isso continue ocorrendo, avançando cada vez mais?
- A escola é fundamental nesse papel de prevenção, porque é dentro da escola que os filhos passam a maior parte do tempo. Também é na escola onde eles convivem com outros colegas que podem estar envolvidos ou oferecendo algo que venha a causar uma dependência. Isso pode ser o crack, a maconha, a cocaína, dependendo do nível social daqueles que estão em escolas públicas ou privadas. O que mais pode colaborar é a escola, mas não sozinha, porque ela tem que estar dialogando com a família, que precisa estar mais presente também no âmbito escolar, não só para assistir às apresentações de seus filhos, mas também procurando saber como eles estão, como está o relacionamento deles com os colegas e os professores. É necessária uma intervenção da família, da escola e (até acrescento) também da igreja. Quando todos estão envolvidos, é mais fácil fazer um trabalho com resultado satisfatório.
- Por quê?
- Porque é necessário que haja esse envolvimento coletivo das instituições. A família, a escola, a igreja, os profissionais de várias áreas, a Justiça... A sociedade como um todo deve se envolver. Peritos da Justiça, em alguns encontros, inclusive recentemente nesse mesmo caso [da criança que fumava maconha], em contato com jovens, demonstravam a preocupação com a penetração das drogas dentro das escolas, mostrando como é tão fácil se viciar. Eles afirmam que é um mal que começa fácil e do qual é difícil sair. Eles se preocupam em realizar esse trabalho preventivo.
- O que eles dizem mais?
- Se a droga for o crack, o cuidado deve ser redobrado, porque ele tem um poder de vício muito maior, uma vez que é fumado. Aliás, existe agora até um novo tipo de droga, a crackoína, que é a mistura de crack e cocaína, o que a torna ainda mais perigosa. Muitas vezes, nós, como profissionais, não temos conhecimento, mas temos a obrigação de fazer parte desse processo de prevenção.
- Ver garotos mendigando e até dormindo ao relento, com sintomas de drogados, é uma cena cotidiana em qualquer cidade do país. Isso demonstra que a droga destrói mesmo um ser humano?
- Totalmente. E não só a vida do viciado, mas também de toda a família. Eu aconselho às pessoas envolvidas nessa realidade que não desistam dos seus filhos e parentes, porque eles são os primeiros a querer que os jovens saiam dessa vida. Eu afirmo isso para as mães, os pais e os parentes que procuram a Promotoria a fim de pedir ajuda, para que seus jovens possam se livrar desse vício, inclusive, às vezes, até chegando ao extremo desesperado de entregá-los nas mãos da Justiça, para que esta os livre desse mal, que é algo que não cabe a ela apenas resolver.
- Mas ocorre que os pais abandonam os filhos drogados.
- Se os pais e as mães desistirem de seus filhos, como nós, da Justiça, iremos fazer para ajudar? É uma questão de educação, que começa em casa e tem razões para chegar a acontecer. Ninguém se envolve com a droga, com algo prejudicial à saúde, se não tiver algum meio que o levou a procurar. Acho que é mais difícil uma pessoa se envolver com drogas se ela tiver um bom relacionamento dentro de casa, com sua família, dentro da escola, com seus amigos e professores, enfim, com a sociedade.
- Por que não cabe apenas à Justiça, doutora?
- Porque Justiça nenhuma vai poder dar de volta aos pais o filho do jeito que ele nasceu. Ninguém nasce com a droga. Nós, que somos referências, pais e mães, somos um modelo, representamos um exemplo importante dentro de casa. Se dermos bons exemplos e fizermos que nossos filhos participem até de questões que tenham um envolvimento social, podemos minimizar e até dificultar muito o acesso deles às drogas. Devemos fazê-los participar de momentos que permitam a eles se doar ao outro, para que eles possam ver como é difícil estar sozinho nas ruas, abandonado e sem família. Temos que demonstrar isso aos nossos filhos. Somos referências. Portanto, é preciso que busquemos enfatizar isso, porque não podemos mudar o mundo se não colaborarmos para que esse mundo se modifique.
- A senhora admite que isso pode tomar a dimensão de uma epidemia social?
- Creio que sim. Eu convivo todos os dias com pessoas que chegam desesperadas, mães chorando muito, com uma preocupação muito grande de fazer aquela pessoa se libertar das drogas. Creio que é uma epidemia, mas que tem muita relação com o modelo de família que se pratica hoje no Brasil inteiro. São pessoas totalmente descomprometidas, que abandonam seus filhos, não procuram dialogar, porque acham que se resolve alguma coisa com uma ação mais rápida, como, por exemplo, batendo e espancando. Elas pensam assim porque é mais fácil bater e espancar um filho para corrigi-lo do que parar e dialogar, o que requer um tempo e um espaço maior da sua vida. Essas pessoas têm que parar um pouco e pensar que “a vida não é só dinheiro, não é só trabalho, vou acompanhar a vida escolar do meu filho”. Acontece que algumas pessoas sequer param para conhecer os professores do filho, o diretor da escola, o amigo do filho.
- Como a senhora percebe essa epidemia social?
- Trata-se de uma questão que incomoda muito porque também existem poucas políticas públicas no sentido de dar encaminhamento a esses jovens, para que, quando adultos, tenham a oportunidade de se transformar fazendo um tratamento. Infelizmente, isso é, sim, uma epidemia, o que nos remete a uma questão de saúde pública. Deve haver uma preocupação maior do poder público para combater essa realidade, em suas três esferas: federal, estadual e municipal.
- O que se constata é que a droga está chegando a todos os segmentos sociais. Em alguns colégios, os próprios alunos traficam a droga para vender aos colegas. Isso aumenta ainda mais a gravidade dessa situação?
- Claro! Até porque a gente percebe o quanto essas crianças estão vulneráveis. Muitas vezes, esses jovens estão na escola com muita dificuldade, sem se alimentar bem, por falta de merenda ou porque os pais estão desempregados, com transporte difícil. Esses garotos ambicionam ascender a um nível social melhor, querem obter uma oportunidade de ter uma roupa melhor, um brinquedo, enfim, uma vida melhor. Crianças assim são presas fáceis para os traficantes, porque são seduzidas por um mundo de “maravilhas” que lhes é oferecido. É por isso que existem todos os “aviõezinhos”, ou seja, pequenos traficantes. Eles começam a achar que é fácil pegar a droga e repassar para os colegas ali dentro.
- Combater o tráfico é a saída. Por que o governo federal não entra nessa guerra?
- Estamos no tempo de uma luta desleal, com um tráfico totalmente articulado e o outro lado completamente desarticulado. Precisamos estar organizados para poder combater, enfrentar e fazer esse enfrentamento. A gente tem que seduzir os jovens com programas melhores e oferecer vantagens a eles, que estão nas escolas precisando de ajuda. Temos de oferecer a eles programas que venham a despertar seu interesse, para que eles não pensem em entrar nesse mundo e ficar. Mas como somos também bastante otimistas, percebemos que já existe uma preocupação nacional e também alguns programas que já oferecem não só tratamento, como também meios de se prevenir contra o uso da droga. Campanhas que existem naturalmente, por meio de instituições e ONGs que se preocupam com a temática. Percebemos que esses programas existem, mas que ainda não estão articulados. Não são ainda uniformes no Brasil inteiro. E é isso que eu acho que era preciso haver: uma união maior entre as instituições nos estados e as iniciativas da sociedade civil no Brasil inteiro.
- E quando os pais são viciados?
- A situação se torna ainda mais complicada, porque duas consequên-cias podem advir disso. Primeiro, os filhos podem se espelhar nos pais, tornando-se também viciados, a partir do modelo que têm em casa. Em segundo lugar, pode acontecer justamente o contrário: os filhos podem não admitir aquilo e podem tentar, eles mesmos, ajudar os pais, porque muitas vezes nós aprendemos com os filhos. Nós sabemos que existem casos em que pais são viciados, mas os filhos não desistem de seus genitores e tudo fazem para encontrar um tratamento, porque querem que seus pais se transformem. Eu acredito que as pessoas podem se transformar, sim, por amor. Por amor, famílias podem ser socorridas e curadas, ajudadas e transformadas. Mas desde que haja essa questão do compromisso e do amor.
- Outro ponto muito forte é que adolescentes passam a ser sexualmente reféns dos traficantes. Como a senhora vê isso?
- Quando isso acontece, a saída desses jovens desse mundo é dificultada. É por causa disso que existem casos e casos, inclusive aqui na Paraíba também, de adolescentes que terminam sendo eliminados, porque eles abriram a boca. Eles tentaram sair e não conseguiram. Aí, começam a ser ameaçados de morte e acabam sendo assassinados. Infelizmente, existem inúmeros casos como esse, mas felizmente já existe também um antídoto, que é o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAAM).
- Como age esse programa?
- É uma iniciativa do governo federal que tem funcionado bem, dando suporte a diversos casos. Posso afirmar que esse programa tem feito a diferença, porque eu mesma já fiz encaminhamentos de jovens para o PPCAAM. Pena que muitas pessoas do Brasil inteiro desconhecem a existência desse programa, que eu posso afirmar que tem salvado muitas vidas, inclusive de adolescentes e familiares destes que foram ameaçados de morte. Hoje, essas pessoas podem contar uma história diferente, graças à intervenção no tempo certo.
- A senhora está pessimista ou otimista diante de toda essa situação?
- Na verdade, eu sou uma idealista, e todo idealista é otimista, porque acredita em transformações e mudanças. Creio nisso, que depende muito de nós, enquanto sociedade, prover as transformações que são necessárias. Depende de nós poder contaminar os outros com este vírus que é o compromisso. Devemos fazer mais do que é a nossa obrigação. Não apenas chegar ao final do mês e colocar nosso dinheiro no bolso e achar que está trabalhando. Conheço muitos colegas que, assim como eu, têm feito a diferença no Brasil inteiro, profissionais comprometidos com o seu trabalho e que não estão preocupados em apenas fazer um processo, estar de corpo presente nas audiências...
- Insistindo: a senhora está otimista ou pessimista?
- Otimista sim! Essa é apenas a obrigação, mas eu sou otimista por isso, porque sei que existem muitas pessoas que têm feito mais, e muito bem, muitas vezes de forma até anônima, contribuindo muito para que as transformações aconteçam na nossa triste realidade. Eu tenho a certeza de que, de mãos dadas, de forma articulada, podemos mudar isso. Meu otimismo é nesse sentido, é para que haja uma mobilização maior, nacionalmente. Não apenas em um estado ou em outro, mas de todo o país, para que as questões políticas sejam deixadas de lado, a fim de que possam se inteirar da responsabilidade e da prioridade que é garantir a existência de pessoas sadias vivendo na sociedade, não pessoas contaminadas e drogadas, como vemos hoje em dia.
Por: Marcone Formiga
Há poucos dias, o país inteiro e até muitas nações acionaram o painel de alarme depois que foram exibidas imagens de traficantes de drogas, no interior da Paraíba, incentivando um garoto de dois anos e meio de idade a consumir um cigarro de maconha. No vídeo, a plateia formada pelos criminosos se divertia e exultava com aquele circo de horror ao qual submetiam a criança. O fato reflete e traduz a crise social que se forma em todo o Brasil, a partir da constatação de que a iniciação dos jovens no mundo das drogas ocorre em todos os níveis sociais e de forma cada vez mais precoce, já no próprio ambiente das primeiras séries escolares.
Soraya Escorel, Promotora de Justiça da Infância e Juventude de João Pessoa (PB), foi quem agiu rapidamente no caso da criança. Mestranda em Ciências Sociais pela UFPB, com estudos e pesquisas sobre a violência nas escolas, ela integra a Diretoria Executiva Nacional da ABMP - Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude. Especialista quando o tema envolve crianças, adolescentes e consumo de drogas, ela também é membro da Comissão Permanente de Infância, Juventude e Educação (Copeije), do Grupo Nacional de Direitos Humanos.
Na entrevista que segue, Soraya Escorel alerta para a gravidade do tema, ressaltando que o poder público, a família, a escola, a Igreja e a sociedade civil precisam agir o quanto antes em conjunto e investir num trabalho preventivo diante do problema devastador que são as drogas, que afeta todo o núcleo familiar. Ela explica que está prevalecendo uma inversão de valores nos relacionamentos entre pais e filhos. Com base em sua experiência diária, ela constata que muitos pais preferem se omitir e abandonar seus filhos dependentes de drogas, quando, na realidade, poderiam ajudar na sua recuperação.
Também defende um envolvimento coletivo, a partir de pilares essenciais, como a família, a escola, a igreja e também profissionais das várias áreas do conhecimento, inclusive da Justiça.
A promotora afirmou que a droga é como uma bomba-relógio. E se for o crack, o cuidado deve ser redobrado, porque seu uso, por uma única vez, já vicia. Como se não bastasse este risco, já existe um novo tipo de droga, a crackoína, uma mistura de crack e cocaína, que tem um efeito devastador no organismo dos usuários.
- O consumo de drogas não tem fronteiras, porque até crianças são iniciadas no vício. A senhora mesma, nestes dias, constatou que um garoto de dois anos foi filmado fumando um cigarro de maconha. Como nossa sociedade chegou a ponto tão fundo neste problema?
- A princípio, eu fiquei bastante chocada ao ver o vídeo, porque todas as pessoas estavam em extasiados ao verem a criança usando um cigarro de maconha, o que provocou até risadas nas pessoas que viam a cena lamentável. Isso já me deixou bastante preocupada, mesmo sem saber quem eram aqueles que estavam no local no momento em que a criança estava fumando. Depois, com o conhecimento do fato, por intermédio da própria mãe da criança, o que mais me chamou a atenção foi a confissão espontânea dela, ao afirmar que estava morando na casa de um traficante que, inclusive, já foi assassinado. Confirmou, ainda, que a criança utlizou a droga no mês de abril,época em que foi gravado o vídeo.
- Mas uma mãe permitir isso é grave, não é?
- Sem dúvida! Mas ela, ao depor, creio que até por questão de defesa, dado que também precisa ser investigado, afirmou que só aconteceu porque ela estava sendo pressionada, ameaçada por esse traficante, talvez até para que pudesse utilizar esse vídeo futuramente. Ela salientou que pediu a ele para que aquilo não ocorresse, mas, de fato, ocorreu. E ela citava isso com muita segurança, apesar dos seus 19 anos de idade, porque compareceu espontaneamente à promotoria, para se entregar. Ou seja, ela estava se sentindo acuada, preocupada com toda essa repercussão na mídia nacional, então se sentiu ameaçada e, principalmente, sentia que o filho estava sendo ameaçado. Afirmou também que sabia o risco que corria, pois quem se envolve com o tráfico sabe que fica muito vulnerável.
- A senhora acreditou na mãe da criança?
- O que mais chamava a atenção também era a coerência do que ela dizia: que, realmente, a criança estava utilizando a droga, mas, ao mesmo tempo, ela confirmava que colocava o filho em risco. Aquilo me tocou bastante, não só no cunho profissional, mas também como mãe. Nós, que somos mães e profissionais, sabemos que não podemos colocar nossos filhos em risco.
- A impressão que se tem é que as crianças conseguem drogas mais facilmente do que um chocolate. É assim mesmo?
- Eu creio que essa inversão de valores entre pais e filhos, nos relacionamentos, está prevalecendo nos lares e na família. Às vezes, pais e mães são os únicos a cuidar do desenvolvimento dos seus filhos junto aos adultos e idosos, de forma bem precoce, justamente por conta dessa inversão, desse abandono que prevalece dentro da própria casa. As pessoas pensam que uma criança está abandonada quando fica apenas sozinha nas ruas. Mas, de fato, a gente que trabalha na Justiça constata que muitas crianças e adolescentes estão abandonados nas suas próprias casas. Por isso, eles terminam não sendo bem instruídos e passam a ser uma presa fácil no mundo das drogas. Isso acontece porque esse mundo é atrativo, uma vez que existe um espaço muito grande a ser ocupado em todas as áreas dos jovens. Essa lacuna, que é deixada pela família, é preenchida exatamente pelo mundo fácil, no acesso à droga, e depois o jovem se inicia no tráfico, conseguindo inclusive se infiltrar facilmente, diante de tantas oportunidades. É importante acrescentar que isso independe da classe social e pode ser iniciado desde a infância e se estender até a adolescência, mesmo dentro da própria casa, sem que os pais percebam ou mesmo que finjam ou se enganem, dizendo que não veem nada. Pois admitir isso é difícil, principalmente porque exige que se reconheça a própria culpa também no fenômeno que ocorre com o filho.
- Como saber se uma criança ou um adolescente está se drogando?
- Para nós, que somos da área jurídica, é mais difícil poder responder uma pergunta como essa. Mas o que os peritos comentam é que a criança manifesta alguns sinais. É possível perceber quando uma criança está fazendo uso da droga, porque dá indícios, que podem ser por cansaço ou estados de euforia, porque a pessoa fica muito ativa. A droga tanto pode dar o sinal de que uma pessoa está em profunda depressão como também em êxtase constante. A partir daí, começa a querer vender coisas dentro de casa, furtar joias e peças de decoração da casa para comprar droga. Outra manifestação é que os jovens não querem ir para a escola ou estão muito deprimidos. Além disso, dão pistas de que estão se envolvendo com pessoas que não são condizentes com a educação que recebem...
- O que a senhora sugere para uma situação como essa?
- É necessário estar presente na vida dos filhos. A partir do momento em que participamos do mundo deles, no dia-a-dia, conversando com eles, podemos perceber como eles estão, se precisam de ajuda e, de forma precoce, poderemos até afastar isso de suas vidas, se eles já se iniciaram no vício da droga. Existem meios de se prevenir, porque quem tem filhos não pode nunca julgar que isso não vai acontecer com eles. É preciso ler, se atualizar e estar sempre preparado para que não ocorram fatos como esses que a gente vê na imprensa. Mas, para isso, é necessário que pais, mães e escolas estejam bastante atentos.
- A escola não poderia funcionar como um suporte para evitar que isso continue ocorrendo, avançando cada vez mais?
- A escola é fundamental nesse papel de prevenção, porque é dentro da escola que os filhos passam a maior parte do tempo. Também é na escola onde eles convivem com outros colegas que podem estar envolvidos ou oferecendo algo que venha a causar uma dependência. Isso pode ser o crack, a maconha, a cocaína, dependendo do nível social daqueles que estão em escolas públicas ou privadas. O que mais pode colaborar é a escola, mas não sozinha, porque ela tem que estar dialogando com a família, que precisa estar mais presente também no âmbito escolar, não só para assistir às apresentações de seus filhos, mas também procurando saber como eles estão, como está o relacionamento deles com os colegas e os professores. É necessária uma intervenção da família, da escola e (até acrescento) também da igreja. Quando todos estão envolvidos, é mais fácil fazer um trabalho com resultado satisfatório.
- Por quê?
- Porque é necessário que haja esse envolvimento coletivo das instituições. A família, a escola, a igreja, os profissionais de várias áreas, a Justiça... A sociedade como um todo deve se envolver. Peritos da Justiça, em alguns encontros, inclusive recentemente nesse mesmo caso [da criança que fumava maconha], em contato com jovens, demonstravam a preocupação com a penetração das drogas dentro das escolas, mostrando como é tão fácil se viciar. Eles afirmam que é um mal que começa fácil e do qual é difícil sair. Eles se preocupam em realizar esse trabalho preventivo.
- O que eles dizem mais?
- Se a droga for o crack, o cuidado deve ser redobrado, porque ele tem um poder de vício muito maior, uma vez que é fumado. Aliás, existe agora até um novo tipo de droga, a crackoína, que é a mistura de crack e cocaína, o que a torna ainda mais perigosa. Muitas vezes, nós, como profissionais, não temos conhecimento, mas temos a obrigação de fazer parte desse processo de prevenção.
- Ver garotos mendigando e até dormindo ao relento, com sintomas de drogados, é uma cena cotidiana em qualquer cidade do país. Isso demonstra que a droga destrói mesmo um ser humano?
- Totalmente. E não só a vida do viciado, mas também de toda a família. Eu aconselho às pessoas envolvidas nessa realidade que não desistam dos seus filhos e parentes, porque eles são os primeiros a querer que os jovens saiam dessa vida. Eu afirmo isso para as mães, os pais e os parentes que procuram a Promotoria a fim de pedir ajuda, para que seus jovens possam se livrar desse vício, inclusive, às vezes, até chegando ao extremo desesperado de entregá-los nas mãos da Justiça, para que esta os livre desse mal, que é algo que não cabe a ela apenas resolver.
- Mas ocorre que os pais abandonam os filhos drogados.
- Se os pais e as mães desistirem de seus filhos, como nós, da Justiça, iremos fazer para ajudar? É uma questão de educação, que começa em casa e tem razões para chegar a acontecer. Ninguém se envolve com a droga, com algo prejudicial à saúde, se não tiver algum meio que o levou a procurar. Acho que é mais difícil uma pessoa se envolver com drogas se ela tiver um bom relacionamento dentro de casa, com sua família, dentro da escola, com seus amigos e professores, enfim, com a sociedade.
- Por que não cabe apenas à Justiça, doutora?
- Porque Justiça nenhuma vai poder dar de volta aos pais o filho do jeito que ele nasceu. Ninguém nasce com a droga. Nós, que somos referências, pais e mães, somos um modelo, representamos um exemplo importante dentro de casa. Se dermos bons exemplos e fizermos que nossos filhos participem até de questões que tenham um envolvimento social, podemos minimizar e até dificultar muito o acesso deles às drogas. Devemos fazê-los participar de momentos que permitam a eles se doar ao outro, para que eles possam ver como é difícil estar sozinho nas ruas, abandonado e sem família. Temos que demonstrar isso aos nossos filhos. Somos referências. Portanto, é preciso que busquemos enfatizar isso, porque não podemos mudar o mundo se não colaborarmos para que esse mundo se modifique.
- A senhora admite que isso pode tomar a dimensão de uma epidemia social?
- Creio que sim. Eu convivo todos os dias com pessoas que chegam desesperadas, mães chorando muito, com uma preocupação muito grande de fazer aquela pessoa se libertar das drogas. Creio que é uma epidemia, mas que tem muita relação com o modelo de família que se pratica hoje no Brasil inteiro. São pessoas totalmente descomprometidas, que abandonam seus filhos, não procuram dialogar, porque acham que se resolve alguma coisa com uma ação mais rápida, como, por exemplo, batendo e espancando. Elas pensam assim porque é mais fácil bater e espancar um filho para corrigi-lo do que parar e dialogar, o que requer um tempo e um espaço maior da sua vida. Essas pessoas têm que parar um pouco e pensar que “a vida não é só dinheiro, não é só trabalho, vou acompanhar a vida escolar do meu filho”. Acontece que algumas pessoas sequer param para conhecer os professores do filho, o diretor da escola, o amigo do filho.
- Como a senhora percebe essa epidemia social?
- Trata-se de uma questão que incomoda muito porque também existem poucas políticas públicas no sentido de dar encaminhamento a esses jovens, para que, quando adultos, tenham a oportunidade de se transformar fazendo um tratamento. Infelizmente, isso é, sim, uma epidemia, o que nos remete a uma questão de saúde pública. Deve haver uma preocupação maior do poder público para combater essa realidade, em suas três esferas: federal, estadual e municipal.
- O que se constata é que a droga está chegando a todos os segmentos sociais. Em alguns colégios, os próprios alunos traficam a droga para vender aos colegas. Isso aumenta ainda mais a gravidade dessa situação?
- Claro! Até porque a gente percebe o quanto essas crianças estão vulneráveis. Muitas vezes, esses jovens estão na escola com muita dificuldade, sem se alimentar bem, por falta de merenda ou porque os pais estão desempregados, com transporte difícil. Esses garotos ambicionam ascender a um nível social melhor, querem obter uma oportunidade de ter uma roupa melhor, um brinquedo, enfim, uma vida melhor. Crianças assim são presas fáceis para os traficantes, porque são seduzidas por um mundo de “maravilhas” que lhes é oferecido. É por isso que existem todos os “aviõezinhos”, ou seja, pequenos traficantes. Eles começam a achar que é fácil pegar a droga e repassar para os colegas ali dentro.
- Combater o tráfico é a saída. Por que o governo federal não entra nessa guerra?
- Estamos no tempo de uma luta desleal, com um tráfico totalmente articulado e o outro lado completamente desarticulado. Precisamos estar organizados para poder combater, enfrentar e fazer esse enfrentamento. A gente tem que seduzir os jovens com programas melhores e oferecer vantagens a eles, que estão nas escolas precisando de ajuda. Temos de oferecer a eles programas que venham a despertar seu interesse, para que eles não pensem em entrar nesse mundo e ficar. Mas como somos também bastante otimistas, percebemos que já existe uma preocupação nacional e também alguns programas que já oferecem não só tratamento, como também meios de se prevenir contra o uso da droga. Campanhas que existem naturalmente, por meio de instituições e ONGs que se preocupam com a temática. Percebemos que esses programas existem, mas que ainda não estão articulados. Não são ainda uniformes no Brasil inteiro. E é isso que eu acho que era preciso haver: uma união maior entre as instituições nos estados e as iniciativas da sociedade civil no Brasil inteiro.
- E quando os pais são viciados?
- A situação se torna ainda mais complicada, porque duas consequên-cias podem advir disso. Primeiro, os filhos podem se espelhar nos pais, tornando-se também viciados, a partir do modelo que têm em casa. Em segundo lugar, pode acontecer justamente o contrário: os filhos podem não admitir aquilo e podem tentar, eles mesmos, ajudar os pais, porque muitas vezes nós aprendemos com os filhos. Nós sabemos que existem casos em que pais são viciados, mas os filhos não desistem de seus genitores e tudo fazem para encontrar um tratamento, porque querem que seus pais se transformem. Eu acredito que as pessoas podem se transformar, sim, por amor. Por amor, famílias podem ser socorridas e curadas, ajudadas e transformadas. Mas desde que haja essa questão do compromisso e do amor.
- Outro ponto muito forte é que adolescentes passam a ser sexualmente reféns dos traficantes. Como a senhora vê isso?
- Quando isso acontece, a saída desses jovens desse mundo é dificultada. É por causa disso que existem casos e casos, inclusive aqui na Paraíba também, de adolescentes que terminam sendo eliminados, porque eles abriram a boca. Eles tentaram sair e não conseguiram. Aí, começam a ser ameaçados de morte e acabam sendo assassinados. Infelizmente, existem inúmeros casos como esse, mas felizmente já existe também um antídoto, que é o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAAM).
- Como age esse programa?
- É uma iniciativa do governo federal que tem funcionado bem, dando suporte a diversos casos. Posso afirmar que esse programa tem feito a diferença, porque eu mesma já fiz encaminhamentos de jovens para o PPCAAM. Pena que muitas pessoas do Brasil inteiro desconhecem a existência desse programa, que eu posso afirmar que tem salvado muitas vidas, inclusive de adolescentes e familiares destes que foram ameaçados de morte. Hoje, essas pessoas podem contar uma história diferente, graças à intervenção no tempo certo.
- A senhora está pessimista ou otimista diante de toda essa situação?
- Na verdade, eu sou uma idealista, e todo idealista é otimista, porque acredita em transformações e mudanças. Creio nisso, que depende muito de nós, enquanto sociedade, prover as transformações que são necessárias. Depende de nós poder contaminar os outros com este vírus que é o compromisso. Devemos fazer mais do que é a nossa obrigação. Não apenas chegar ao final do mês e colocar nosso dinheiro no bolso e achar que está trabalhando. Conheço muitos colegas que, assim como eu, têm feito a diferença no Brasil inteiro, profissionais comprometidos com o seu trabalho e que não estão preocupados em apenas fazer um processo, estar de corpo presente nas audiências...
- Insistindo: a senhora está otimista ou pessimista?
- Otimista sim! Essa é apenas a obrigação, mas eu sou otimista por isso, porque sei que existem muitas pessoas que têm feito mais, e muito bem, muitas vezes de forma até anônima, contribuindo muito para que as transformações aconteçam na nossa triste realidade. Eu tenho a certeza de que, de mãos dadas, de forma articulada, podemos mudar isso. Meu otimismo é nesse sentido, é para que haja uma mobilização maior, nacionalmente. Não apenas em um estado ou em outro, mas de todo o país, para que as questões políticas sejam deixadas de lado, a fim de que possam se inteirar da responsabilidade e da prioridade que é garantir a existência de pessoas sadias vivendo na sociedade, não pessoas contaminadas e drogadas, como vemos hoje em dia.
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